A foto aparece no blog da Tea for One com a seguinte legenda: «Inês Dias com o pleno da edição de ‘Em caso de tempestade este jardim será encerrado’ (foto de Marta Chaves)». Inês ri mas percebemos que o volume ainda pesa e não dá muito jeito a transportar; e o autor do post e editor, Miguel Martins, ri-se manifestamente com a legenda que escreveu para a foto que Marta Chaves tirou, enquanto (de certeza) esta dizia a Inês para se rir para o passarinho.
Eis, pois, a diferença empírica entre um livro de poesia e um romance: a edição do romance não caberia num pacote transportável pelo autor. Seria caso para perguntar, entretanto, o que justifica, na era do digital, esta insistência na edição do «livro de poesia». O romance, é sabido, está a acompanhar a grande migração do livro para o e-book, seguido de perto pelo ensaio. O livro infantil será a próxima vítima, seguramente, já que a interactividade activada pela ilustração e pela relação entre esta e o texto só ganhará com a passagem a uma plataforma que permita inflacionar a dimensão lúdica do objecto. O iPad é um instrumento decisivo nesta migração, já que tudo aquilo que se dizia serem os trunfos do formato «códice» – saltos para a frente e para trás na leitura, anotações, etc. – é permitido pelo tablet, que ainda introduz novas e impressionantes valências na área do «manuseio» da obra. E contudo, na remota aldeia da poesia um punhado de gauleses resiste até ao fim…
A resistência é tão-mais impressionante quanto o livro de poesia é tipografia mínima: não há nada a inventar no que toca à paginação de um poema. A diferença entre as boas e más edições de poesia reside justamente aqui: as más são quase sempre aquelas que rejeitam este axioma e tentam descobrir a pólvora. No caso das boas, a diferença entre umas e outras tem sobretudo a ver com o formato da página, por vezes demasiado magra, outras vezes demasiado quadrada. Se assim é, a pergunta seria: neste momento, qual a mais-valia da edição em papel em relação a um e-book de poesia legível num Kindle? Pois se é possível argumentar que o iPad, enquanto dispositivo de leitura (enquanto meta-dispositivo que comporta dentro de si outro dispositivo de leitura para livros), é distractivo, já que oferece demasiadas possibilidades de «saída» e interacção com a net, o Kindle, por seu turno, é um dispositivo deliberadamente pobre, ou restritivo, já que se limita a oferecer, no seu pequeno ecrã, uma página para leitura, ainda que com possibilidades de interacção com o texto (anotação, saltos para a frente e para trás, etc.). Ou seja, entre a tipografia mínima do livro de poesia e a legibilidade máxima do Kindle pareceria poder estabelecer-se uma aliança duradoura: o Kindle, digamo-lo tecnicamente, favorece a close reading, o método «naturalizado» de ler poemas no Ocidente. Essa aliança, e esse é o ponto, parece favorecer ainda a economia pobre da aldeia da poesia, na medida em que, em princípio, corta drasticamente custos na cadeia de produção e, logo, no consumo.
Não é isso, porém, o que sucede, pelo menos ainda nesta fase do devir técnico aplicado ao livro de poesia. Pelo contrário, um imaginário de resistência parece animar as «pequenas / tripulações» (Diogo Vaz Pinto) que em Portugal se vão encarregando da tarefa de editar os livros de estreia dos poetas da nova geração, mas não apenas. Esta resistência tem, como sempre em fases de mutação tecnológica e civilizacional, uma visível duplicidade, já que oscila entre uma atitude ludita, demasiado próxima de um certo pitoresco humanista anti-tecnologia, e a recuperação de toda uma erótica dos materiais do livro: gramagem e textura de papéis e cartolinas, manuseabilidade, portatibilidade, enfim, a leveza do livrinho de poesia como traço do Livro enquanto objecto com (e de) peso. É esta erótica que a foto de Inês Dias segurando toda a edição do seu livro nos dá a ver, não só na contiguidade corporal entre autora e livro, mas sobretudo na possibilidade de a autora sobraçar, melhor, abraçar e, logo, possuir, o todo da sua obra enquanto coisa no mundo. Obviamente, é esta dimensão que o e-book aliena de modo radical, alienando assim a possibilidade de em torno de um pacote de livros se constituir uma comunidade aspirando a um regime de co-presença. O outro nome de uma comunidade assim imaginada é, admita-se, seita.
Uma seita que é, ao mesmo tempo, uma internacional: uma internacional de artesãos num mundo hipertécnico, mas uma internacional potenciada precisamente por esse devir hipertécnico. Não apenas pelos aspectos propriamente comunicacionais que a revolução digital trouxe, favorecendo a proximidade entre gente afastada por continentes e oceanos, incentivando pois a prática da tradução e circulação de poemas, mas também pelo facto paradoxal de que o livro de poesia em papel como forma de resistência ao e-book e à desmaterialização é hoje, em todas as fases da sua produção (paginação, desenho da capa, envio de provas por pdf), com excepção da da tipografia final, e mesmo essa apenas parcialmente, um produto dos novos meios (sem esquecer a promoção e comercialização de todas estas «editoras étnicas» em blogues, Facebook, etc.). A não ser que a resistência se alargue à recuperação da tipografia tradicional, o que sucede porém residualmente na edição de poesia, de novo por razões económicas. Note-se, aliás, que o admirável mundo novo do e-book e do Kindle, ou do iPad, é um mundo para gente graúda, já que a indispensável intermediação da Amazon paga-se bem cara, não estando ao alcance das microeditoras de poesia. Resumindo: os novos meios embaratecem a produção do livro de poesia em papel, livro esse que, entre todas as tipologias do livro, é talvez a que mais resiste ao devir imposto ao livro pelos novos meios no sentido do e-book. Uma seita, pois, ou uma internacional, de hackers, recorrendo a todas as armas fornecidas pelo inimigo para lhe resistir.
Falta referir talvez dois pontos. O primeiro: a insistência num suporte material para o livro de poesia argumenta, em princípio, em favor de uma concepção da linguagem poética que hipertrofia a sua materialidade, na sequência dos gestos já bisseculares de Mallarmé & Co. em torno da «crítica da representação». A questão é contudo paradoxal, uma vez que a materialidade da linguagem poética é a tónica de certas versões do poético para as quais a revolução digital se vem revelando, porventura ilusoriamente, a revelação de um «sentido da História». É o caso da poesia visual, ou experimental, cujas fases anteriores parecem tomadas de vertiginosa obsolescência face às possibilidades activadas pelo software actual e pela explosão da internet, que prometem um mundo de possibilidades (sobre os problemas desta leitura, sugiro um ensaio fundamental de Paulo Franchetti). Em Portugal, contudo, devido à natureza do devir do tronco central da nossa produção poética, a poesia experimental nunca conseguiu abandonar a sua posição periférica e marginal, pelo que a posição marginal a partir da qual as microeditoras de poesia de hoje resistem ao digital se harmoniza sem conflito aparente com a prática de uma poesia que em nada contesta a representação «estabilizada» do poético que se instalou no centro do nosso sistema literário (bem visível na reacção de enfado ante qualquer experimentalismo, seja ele de proveniência concretista e brasileira ou norte-americana e canadiana). O segundo ponto é «institucional» e tem a ver com a constatação de que apesar da proliferação de suportes para a publicação de poesia permitidos pelos novos média, o elemento legitimador da existência de um «novo poeta» permanece o livro em papel. Desse ponto de vista, as esperanças colocadas, em tempos aparentemente já remotos, num novo «mundo da poesia», que naturalmente incorporaria uma crítica aberta aos modos de comunicação possibilitados pelos novos meios, vêm sendo sistematicamente defraudadas. A atenção crítica à poesia publicada na net é mínima, seja no mundo da imprensa seja no da academia (ainda que bem superior neste ao que sucede naquele, diga-se). Seria talvez necessário que a crítica literária pudesse não ser uma «crítica de livros» para que se viesse a produzir um discurso realmente disponível à consideração de todas as potencialidades dos novos meios neste domínio – e, de novo, só a universidade contém essa possibilidade, que não se afadiga porém a explorar, uma vez que na imprensa, e mais especificamente no jornalismo cultural, a crítica literária não é pensável fora da figura institucional da «crítica de livros», uma subfigura do ramo de actividade centrado nas «novidades editoriais».
Em todo o caso, a alegria de Inês Dias permanece. E, com ela, a dos leitores/recolectores de livros de poesia.
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