Sobre um dos «Crimes Exemplares» de Max Aub

É um dos micro Crimes Exemplares de Max Aub: um daqueles que coincidem com uma frase, sem contextualização nem descrição de personagens, produzindo uma redução de mundo que é também, muitas vezes, uma abrupta redução de razões. Não é todavia o caso, já que o conto em pauta (ou melhor, a «confissão»: não esquecer que é sob esta figura da antiguidade jurídica e cristã que Aub coloca estes crimes de exemplo) se esgota na produção da razão. Cito-o da edição portuguesa (p. 21):

Matei-o porque tinha a certeza de que ninguém estava a ver.

Note-se que na edição ilustrada que a Antígona entretanto publicou, em 2008, importada das edições Media Vaca, a tradução não coincide no final da frase – «…ninguém me estava a ver» -, situação recorrente no livro e porventura atribuível a uma intervenção da revisora, Carla da Silva Pereira, sobre a tradução de Jorge Lima Alves. Em espanhol, aqui (p. 23), o texto é o seguinte:

Lo maté porque estaba seguro de que nadie me veía.

E é tudo: nenhuma descrição do morto, da situação (o onde e o quando) do homicídio, sequer da arma do crime e do modus operandi (o como). Apenas um (aparente) discurso de razões: «porque tinha a certeza de que ninguém me estava a ver». O crime é, pois, suficientemente despragmatizado para poder ser deslocado ao longo da montanha-russa da História do Crime, da antiguidade pré-helénica à Alemanha de Fritz Lang e aos EUA de Al Capone e Bernard Madoff, digamos. Duvido porém que possa ser despragmatizado a ponto de o excluirmos das fronteiras da «Civilização Ocidental».

Passo a argumentar. Esta confissão pode ser lida, suponho, em clave anti-kantiana: quem mata porque ninguém está a ver coloca esse «ninguém» na posição do análogo que o Kant da segunda Crítica produz para a validade irrestrita e incondicional da lei moral, que deveria estar em mim com o mesmo estatuto com que o céu estrelado está sobre mim. Em rigor, o «ninguém» é aqui o Superego que denuncia justamente a inexistência de lei moral em mim. Mas a questão é ainda anti-kantiana se admitirmos que em vez de uma oposição radical (ou «discreta») entre haver em mim lei ou não haver, o que este superego chamado Ninguém dá a ver é que a lei moral se institui e vacila em torno de coisas bem mais pequenas do que um homicídio: tirar por exemplo o macaco do nariz e tomar a decisão de o comer ou não, uma típica decisão tomada no conforto dessa certeza de que ninguém está a ver. Ora, não parece que a decisão de «tirar e comer o macaco do nariz», uma decisão que se pode tomar sem contudo desejar para ela o estatuto de lei universal, implique que eu deixe de ser um sujeito moral noutras esferas, públicas ou privadas. Podemos admitir que este seria um caso em que a parte não estaria necessariamente pelo todo (ou, recuperando a Gestalt: o todo seria mais do que a soma destas partes pequenas).

Há, depois, a considerar a historicidade deste «ninguém», que tenho dificuldade em não ler de forma civilizacionalmente situada. O crime, digamos, possui uma ontologia diversa antes e depois do processo de secularização. No antes, o nome próprio deste «ninguém» é, obviamente, Deus: omnipotente mas sobretudo, para a natureza desta confissão, omnisciente. É porque Ele tudo vê que o crime, supostamente às escondidas, é um pecado contra Ele ou, o que vale o mesmo, contra a sua Lei. Acresce que pretender – com «certeza» – que Deus não vê o crime é ainda pecado de orgulho (a tradução cristã para a hybris trágica). Nada aqui parece poder ilibar o criminoso, já que a violação da lei da Igreja é feita com pleno conhecimento: eu sei que a Lei existe e é porque o sei que espero pelo seu momentâneo eclipse – admitindo que Deus se possa eclipsar por um instante – para a violar. A confissão, porém, admitindo a deliberada violação, não parece admitir o pecado enquanto consciência da culpa, pelo que a auto-penitência nem sequer faz sentido no quadro desta confissão, em rigor produzida por um descendente de Satã.

No depois da secularização, «ninguém» é o nome figural do Estado. Não custa muito «traduzir» a descrição da situação anterior à secularização para a posterior, recorrendo, por exemplo, a um instrumento (e uma alegoria) como o Panopticum, tal como Foucault o operacionalizou: em vez de Deus, o Estado como omnisciência; em vez do pecado como inscrição no âmago, ou alma, do ser, as técnicas de indexação e punição da biopolítica moderna. O eclipse da Lei é agora admissível sem arrepio ontoteológico: basta que a luz eléctrica falhe numa das megalópoles contemporâneas, e com ela a videovigilância, para que as trevas desencadeiem a pilhagem. E há toda uma vasta biblioteca, e filmoteca, do policial contemporâneo, na qual o crime é função de um logro, mais ou menos espectacular, praticado sobre poderosas tecnologias de vigilância, satélites incluídos (a cibervigilância, última fronteira do Panopticum, não escapa, também ela, à iminência do apagão libertador, na óptica do criminoso).

Evidentemente, este crime ratifica uma antropologia filosófica e política de tipo hobbesiano: quem assim viola a lei não pode deixar de suscitar o imperativo da omnipresença do controlo (Superego, Big Brother, Leviatã). Note-se que, em rigor, o criminoso parece estar a reivindicar uma liberdade negativa, que consistiria no seu direito a não ser molestado na busca dos objectivos que elegeu. Uma vez que os objectivos são porém moralmente iníquos, essa reivindicação reforça apenas a ideia de que há um direito maior, e mais frio, que o dos indivíduos e das suas paixões pessoais.

Mas seria caso para perguntar, com um módico de «suspeita», o que vem primeiro: se o crime, se o controlo. Na lógica do controlo, a precedência cabe ao crime: é porque este humano (e o ser humano) é criminoso que o controlo se activa, enquanto função necessária – correctiva e moral – do Estado. Por seu turno, o crime, na sua formulação / confissão pelo criminoso, pressupõe a precedência do controlo, que o crime dá a ver em negativo – e tão-mais o dá a ver quanto afirma, de forma algo pueril, a «certeza» da sua suspensão momentânea.

Regresso, para terminar, àquele ponto prévio sobre o cunho «Ocidental» desta confissão criminosa. Poderia talvez argumentar-se que, sendo a descrição do crime tão reduzida a esqueleto, ele seria facilmente migrável para outras paragens. Permito-me discordar, invocando em meu apoio um argumento borgesiano: aquele que leva o nome de História Universal da Infâmia, obra de 1935. Como o título indica, o propósito do autor é aí universal, percorrendo latitudes, tempos e civilizações diversas. Mas sobretudo, o propósito de Borges parece ser o de reconstruir não tanto as biografias de varões infames, e sim a casuística do processo-crime – a causa, o lugar, o método, etc., que regressa na descrição de cada «infame» – como o verdadeiro universal de uma história da infâmia.

O projecto de Aub é outro, creio, e num certo sentido mais radical. Não se trata nem de uma história, nem de infâmia: esta, aliás, pressupõe uma qualificação moral (e política) do crime de que Aub se abstém cuidadosamente. Do mesmo modo, e ao invés de Borges, não se trata de revisitar Plutarco, produzindo ambíguas biografias de exemplo: os criminosos de Aub não têm nome e não são o objecto mas o sujeito pulsional das suas narrativas, sendo o ponto central da técnica destas a subtracção de todo o aparato contextual (aquilo em que Borges se compraz, desde logo para a produção de toda uma teoria de apócrifos). Et pour cause: onde há só pulsão, a narrativa perde as suas condições de possibilidade. A pulsão seria, nestes crimes, aquilo (tudo aquilo) que vem antes da lei moral e que faz destes textos confissões para cá do bem e do mal. Nesse sentido, Aub confronta-nos com pessoas em estado de aparente (e, admitamos, inconvincente) nudez moral, e justamente por isso pessoas que são em si um escândalo civilizacional.

Mata-se porque: uma vasta série dos crimes exemplares de Aub segue este modelo, geralmente os mais curtos e abruptos. No crime que elegi, o porque parece condicionar a pulsão ao seu funcionamento nos limites da simples Razão, vale dizer, nos limites da omnisciência do Estado. Neste sentido, este crime ilustraria a situação moderna, ou hipermoderna, de sujeitos despossuídos da sua subjectivação: porque, justamente, é esta peculiar modalidade de emergência da pulsão que nos dá a ver a que ponto o sujeito moderno é parasitado pela omnisciência do Estado, essa forma concreta, e em rigor pós-histórica, da Razão. O que significa que a leitura do crime em clave anterior à secularização não convence, bem vistas as coisas. Mas significa também, e por fim, que a resposta a esta situação pós-histórica da Razão, na qual o Estado que tudo vê se emancipou já, enquanto pura função, da sua causação histórica e do seu conteúdo empírico, só pode em rigor provir do… humor negro. Porque este contrapõe à naturalização da Razão do Estado e à sua identificação com o imperativo moral a brut(al)idade de crimes cuja exemplaridade só pode ser reivindicada enquanto recusa de qualquer esforço para explicar (controlar) racional e moralmente o acto criminoso. Confessar que se matou alguém porque ninguém estava a ver não equivale, de facto, a produzir um discurso de razões do crime, mas antes a confessar a sua inevitabilidade, haja lei moral e controlo ou não. O «ninguém» enquanto superego não evidencia apenas a ausência da lei moral em mim; evidencia também, e sobretudo, a irrelevância do esforço humano na produção de técnicas de controlo das pulsões, já que estas encontram sempre o ponto de fuga, a falha, o devir que as afirma, em clave rigorosamente extramoral.

Daí, seguramente, a dimensão catártica destas confissões, do lado não apenas de quem as faz, mas em particular do de quem as lê. Fúria parricida, psicanálise selvagem: modalidades da estranha exaltação com que o «crime exemplar» nos emancipa dos esforços dialécticos da Lei & da Moral, propondo uma espécie de racionalidade do tautológico. Como se, contra lei e moral, bastasse o mais banal dos «crimes»: aquele em que nos rendemos ao que existe em nós apenas porque sim.

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