Esferas da existência

Os Diapsalmata dos Papéis de A (1.ª Parte de Ou/Ou Um fragmento de Vida), edição de Victor Eremita, do filósofo Kierkegard, foram editados pela Assírio & Alvim em Abril de 2011. Trata-se de uma tradução direta do dinamarquês levada a cabo por Bárbara Silva, M. Jorge de Carvalho, Nuno Ferro e Sara Carvalhais, também autores das 30 páginas de notas, seguidas de um posfácio de 48 páginas, de M. Jorge de Carvalho e Nuno Ferro. Considerando que os fragmentos ocupam 33 breves páginas, adivinha-se a complexidade da tarefa.

A indicação, em subtítulo, da extensa obra de onde são amputados estes refrães – Ou/Ou, publicada em 1843 –, e do seu autor, A, e editor, Victor Eremita, introduzem o leitor na prolífica ficção autoral do filósofo. Os fragmentos que constituem os Diapsalmata são o primeiro capítulo da obra de extensão wagneriana, após o prefácio do editor. Prolongando o pacto ficcional, Victor Eremita esclarece ter encontrado os papéis em lugar escondido, cabendo-lhe apenas a subsequente tarefa de os ordenar. Neste teatro de personagens em que o autor empírico deliberadamente se oculta, os ensaios/aforismos editados representam um ponto de vista de um eu melancólico e  parcialmente autobiográfico, dado que parte deles provém de escritos pessoais ou cartas de Kierkegaard.

A apologia da disjunção evidente em alguns fragmentos, aponta para uma recusa de fixação, para um estilo que os posfaciadores designaram desultório no sentido de saltitante e, por consequência, inconstante. Ilustra-o “Ou-Ou. Uma palestra extática”, inspirada em Diógenes Laércio (um dos dois fragmentos com direito a título):

Casa-te – vais-te arrepender disso; não te cases – também te vais arrepender disso. Cases-te ou não te cases, vais-te arrepender das duas coisas; ou te casas, ou não te casas, arrependes-te das duas coisas. Ri das loucuras do mundo – vais-te arrepender disso; chora sobre elas – também te vais arrepender disso. Rias tu das loucuras do mundo ou chores por elas, vai-te arrepender das duas coisas; ou ris das loucuras do mundo, ou choras por elas, arrependes-te das duas coisas. Confia numa rapariga – vais-te arrepender disso; não confies nela – também te vais arrepender disso. Confies tu numa rapariga ou não confies nela, vais-te arrepender das duas coisas; ou confias numa rapariga, ou não confias nela, vais-te arrepender das duas coisas. Enforca-te – vais-te arrepender disso; não te enforques – também te vais arrepender disso. Enforques-te tu ou não te enforques, vais-te arrepender das duas coisas; ou te enforcas, ou não te enforcas, vais-te arrepender das duas coisas. Esta é, meus senhores, a quinta-essência de toda a sabedoria da vida.”

No seu lirismo, estes fragmentos, com francas afinidades com o Romantismo alemão, também o superam na medida em que se furtam a “qualquer projecto de sentido em geral” (97), notando o carácter ilusório do movimento.

Desespero, ironia, humor e inocência atravessam os fragmentos em que a visão da poesia, amor, riso, tempo, prazer, mágoa, tédio se confronta com situações outras, retiradas da experiência pessoal, da literatura, da filosofia, da música e assim indefine os contornos da reflexão e o pesadelo da sua vida.

Soren Kierkegaard, Diapsalmata, Lisboa, Assírio & Alvim, 2011. ISBN 978-972-37-1516-3.

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