Em primeiro lugar: o que é a História? Em segundo lugar: o que é o colonialismo? Em terceiro lugar: o que é a memória? E, na aparência, o pressuposto estável (a tartaruga sobre a qual se apoia o elefante) que permite perguntas e talvez respostas: o cinema enquanto coisa revisitável in totto, desde os primórdios até ao nosso reencantamento fetichista, em formato 1:1,33, a preto e branco e com muito grão.
Uma primeira hipótese de resposta poderia ser: a História é o trabalho de dessincronização de imagem e som; o colonialismo é o Monte Tabu; a memória é um crocodilo de olho «vítreo e glauco», como se aprende na retórica da literatura colonial; e o cinema, por fim, uma coisa rotunda como um elefante, apoiada na ilusão de uma carapaça vetusta.
Podemos começar por aqui. Num dos seus últimos livros, Laura Mulvey nota que, ao contrário do que era o foco do seu trabalho nos anos 70, quando via a vanguarda fílmica como o «oponente binário» do cinema de Hollywood – e da forma como este «construía» a estrela feminina como seu espectáculo último –, a situação contemporânea tinha-a feito perceber que «as estéticas do cinema possuem uma coerência maior ao longo do seu corpo histórico face às tecnologias dos novos média e das novas formas de ver filmes que elas geraram» (p. 7). É essa «coerência de ordem superior» que Tabu nos dá a ver, precisamente por a sua ser, de modo muito deliberado, uma situação pós-histórica ou, se se preferir outra terminologia, entre-imagens. Estou a tentar sugerir que Tabu se poderia renomear, em título ou subtítulo, História(s) do Cinema; e que, nesse sentido, o filme é um dos últimos avatares do rastro godardiano no cinema contemporâneo (Murnau seria aqui o nome para um engodo). Porque não se trata apenas de «citações», ainda que elas abundem. Trata-se sim de relançar o discurso da ontologia da imagem fílmica, que podemos indexar a Bazin, aos Cahiers e à Nouvelle Vague, aqui de novo indexada ao Godard da pergunta e resposta de Le petit soldat (1960): «O que é o cinema?» «A verdade 24 vezes por segundo». Este discurso, que faz do cinema uma ilha, ou um bloco isolado na longa duração de um trabalho em torno da opticidade (os brinquedos ópticos como variante da grande tradição dos brinquedos filosóficos), que hoje se prolonga no 3D ou nos videojogos, ressurge no filme de Miguel Gomes, desde logo naquela posição muito hegeliana segundo a qual a verdade de um fenómeno se vê melhor a partir do seu fim.
Esse fim coincide em Tabu com o início do filme, logo após o «prólogo» que nos dá a colonização africana pós-Conferência de Berlim e o sub-romantismo literário que lhe correspondeu – «Variações pindéricas sobre a insensatez», para transcrever o título da música adorável de Joana Sá –, mas também o cinema, desde o seu primitivismo (por ex., na justaposição no mesmo plano da amada morta e do homem, ou crocodilo, vivos, sem truques que dela façam um espectro) até à tradição do cinema etnográfico, no momento em que os africanos cantam e dançam «celebrando» o suicídio do «intrépido explorador». O início a que me refiro é o plano frontal em que Pilar, na sala de cinema, vê um filme em fora de campo, esse plano no qual se inscreve o título «Paraíso Perdido», em lettering que seguramente não seria dos amores de Jan Tschichold, para me reportar a um grande moderno. Cena metafílmica, muito reconhecível no arquivo histórico do cinema moderno, que regressa quando Pilar, numa posterior sessão fílmica, nessa altura com o lerdo e sonolento candidato a namorado, chora, chorando talvez o cinema enquanto coisa passada. E, em ambas as ocorrências, verosimilmente pouco acompanhada no seu hábito de cinéfila (a cinefilia, lembra Jonathan Rosenbaum, mudou-se para as telas dos computadores e, nas salas de cinema, está geracionalmente condenada à extinção). Somemos a este fulgurante início pós-histórico aquele tom fatigado e gasto com que a voz de um idoso Ventura, sempre à beira de se sumir – uma voz, em rigor, póstuma –, evoca a sua vida no «Paraíso». Ou a tonalidade, de uma ironia algo transcendental, da voz over que narra o prólogo e que não é deste filme, já que nem se consegue, ou deseja, conectar com o drama psicológico de «Paraíso Perdido», nem bate certo com o melodrama saturado de «Paraíso». Está visivelmente longe, no lugar de um Sujeito Suposto Saber, lugar de um saber largamente ‘inconsciente’ que o espectador nele supõe (melhor: é suposto supor). Esse saber-mais que no prólogo a voz, ou melhor, a vocalização do texto (um texto hiper-literário, seguramente pilhado em vária tópica ultra-romântica, na sua maioria de teor paródico) nos faz chegar e que coincidiria com o lugar do Cinema enquanto inconsciente «estruturado como uma linguagem óptica». O prólogo daria pois a ver em simultâneo a arqueologia dessa linguagem e o lugar, quase-transcendental, em que qualquer revisitação dela coloca o cinema hoje. E, logo a seguir, as duas partes do filme exemplificariam, com um saber que é ainda da ordem do pós-histórico, as diversas possibilidades do cinema enquanto «linguagem».
O saber é aqui, e regressemos a Godard, essencialmente um saber da dessincronização de imagens e sons, esteja em pauta o prólogo ou, mais espectacularmente, o segmento «Paraíso». E, na medida em que se inicia pelo fim – na medida em que começa pós-tudo –, também «Paraíso Perdido» integra essa arte da dessincronização ou «conhecimento pela montagem» sem a qual não há, de acordo com Godard, História. História e Cinema seriam pois em Tabu nomes intercambiáveis, se admitirmos que uma e outro vivem desse trabalho de re-sincronização de imagens e sons que Godard historicamente colocou sob a égide da «imagem não justa». Como em conversa com Régis Debray, recuperada estrategicamente por Georges Didi-Huberman no seu Imagens apesar de tudo: «Não há a imagem, não há senão imagens. E há uma certa forma de juntar imagens: assim que há duas, há três. […] É esse o fundamento do cinema» (Lisboa, KKYM, 2012, p. 172). Comentário de Didi-Huberman: Godard «só vê e só constrói imagens plurais, isto é, imagens captadas nos seus efeitos de montagem» (p. 173).
Seria altura de inquirir, das imagens centrais de Tabu – o crocodilo e o Monte Tabu, antes de mais –, se se trata de imagens justas, tal como pretende a leitura dominante do filme enquanto objecto «em estado de Graça». Tal justeza parece pressuposta, em sede tecnológica, no gesto reactivo da opção pelo preto e branco, pela película Kodak escolhida, ou pelo formato 1:1,33. Que é como quem diz, pela adopção de uma estratégia de hibernação na mónada-cinema (o elefante em cima da tartaruga, para regressar à imagem inicial), enquanto cá fora o mundo sofre o devir-digital que se repercute também lá dentro da sala, na cabine de projecção que, suponho, não projecta o filme a partir da película mas do DVD. A questão não é obviamente anedótica: é mesmo central para a estética e para a política da imagem fílmica em Tabu. Porque o filme transporta, prima facie, um fortíssimo apelo à nostalgia da «imagem justa», que nos daria a perda do paraíso (africano e cinéfilo) mas, em compensação, a certeza (mimética) da sua existência pretérita. Esta justeza deriva, precisamente, da evidência com que a retroacção dá a ver a imagem fílmica, e o desfile óptico do cinema todo, na era do pós-cinema. Tal apelo conflitua porém, em todo o filme, com uma espécie de crítica imanente dos materiais, se me é permitido dizê-lo assim. Por exemplo, na cena que faz a transição para a parte II, na selva do Centro Comercial, «introduzida» por um movimento de câmara em que vemos as personagens de Ventura, Pilar e Santa a entrarem nesse espaço vindos de um corredor que, no seu final, exibe uma máquina de diversão para crianças que a desejem cavalgar, mediante introdução de moedas: um crocodilo de formas «infantis».
O problema reside, de novo, no facto de aquela dimensão do trabalho de Miguel Gomes sobre os materiais que mais tem encantado a crítica – Aurora e Ventura a olharem directamente para a câmara, no culminar de um travelling longo e memorável, a sincronização falhada da banda com a música Yé-yé do tempo colonial, as vozes diegéticas que a banda sonora emudece – não parecer colocar substancialmente em causa a justeza da imagem em Tabu. De facto, o artifício da dessincronização, por demais evidente em «Paraíso», acaba por estranhamente reforçar uma versão da imagem como coincidência, cuja ontologia a eliminação da voz diegética vem – paradoxo maior – saturar. Porque esse é talvez o nó cego do filme e decerto, ao mesmo tempo, a evidência maior do génio com que Miguel Gomes enfrenta a gestão dos seus materiais: o som que banha as imagens do Paraíso, provindo de um algures que, sem voz humana, parece coincidir, nos seus melhores momentos (acima de todos, a inesquecível apresentação de Aurora a Ventura, por entre o ruído mudo de uma cena social com o marido dela, Mário, etc.), com aquilo que seria o comentário luxuriante e mudo da Natureza. E a moral desse comentário, que coincidiria com a do crocodilo e a do Monte Tabu, seria algo como: «Nada a declarar». O que não bate certo com a longa e fatigada elegia (ou litania?) activada pela voz de Ventura, que nos tenta convencer, entre gestos nobres de despedida, renúncia e amor eterno, que o mundo é comandado pelos gestos dos amantes. Esses gestos que, ao olhar impávido do crocodilo e do Monte Tabu, não são mais do que um gesticular recoberto pelo ruído de fundo de uma Natureza (uma selva) que tudo abafa.