«Aniversário», José Ángel Valente

Não compreenderás
para que é que voltei.
Talvez, aí deitada,
não compreendas
nada do que vive.
Voltei, apesar de tudo,
para falar-te outra vez.
(Está molhada
e limpa a colina.)
Ainda te vejo
com o rosto de sempre
e os cabelos, em seu reino
de fumo, algo encanecidos.
Não tenho olhos
para mais. Não és
talvez assim e é isso a morte.

Voltei para te falar.
Estou aqui. Não compreendes
nada. Esqueci-te
tanto e consegui
esquecer-te tão pouco.
Estou alegre: às vezes
não me recordo de ti
(também isso é a morte?).
Não sei se me compreendes,
nem sequer
se estás aqui ou deslizas
por um ar que nunca
pesou sobre a minha boca.

(A colina, apesar de tudo,
está quieta debaixo do céu
tal como dantes.)
Mas ouve-me se puderes.
Num dia como o de hoje
caiu a neve,
arrebatadora. Eu cumpro,
inutilmente, o rito. Mas não importa;
não podes compreender-me.
Tudo foi cortado.

Poema incluído em A modo de esperanza (1954). Tradução de OMS.

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A cegueira da escrita. Sobre a cena da escrita em Carlos de Oliveira

Nenhum heroísmo, nenhuma retórica, um mínimo de corpo: eis uma descrição possível da cena da escrita em Carlos de Oliveira. A cena, esclareça-se, é nocturna, oficinal e despojada de qualquer tipo de transcendência, nem que apenas a fornecida por essa forma moderna, ou burguesa, de transcendência a que damos o nome de Literatura. O autor escreve à «luz eléctrica», que aqui não é um dos nomes (ou o nome) do ansioso Eros moderno, fabril e febril, de Álvaro de Campos, mas tão-só o foco e o casulo de uma prática simultaneamente criativa e mecânica, corporal e espectral, intensa e mortificante. Leia-se, de uma das escassas descrições dessa cena:

O trabalho oficinal é o fulcro sobre que tudo gira. Mesa, papel, caneta, luz eléctrica. E horas sobre horas de paciência, consciência profissional. Para mim esse trabalho consiste quase sempre em alcançar um texto muito despojado e deduzido de si mesmo, o que me obriga por vezes a transformá-lo numa meditação sobre o seu próprio desenvolvimento e destino. (Carlos de Oliveira, O Aprendiz de Feiticeiro, Lisboa, Sá da Costa, 19793, pp. 205-206.)

Notemos o perfil moderno deste autor «sem biografia», como quase todos os grandes modernos, a começar pelo escriturário Pessoa: «trabalho oficinal», «consciência profissional», «horas de paciência», despojamento e, finalmente, auto-consciência da obra de arte. Esta descrição surge potenciada em verso no extraordinário «Soneto Fiel», de Sobre o lado esquerdo (1968), de que transcrevo os últimos sete versos: «A solidão coalhada sobre a mesa. // As sílabas de cedro, de papel, / A espuma vegetal, o selo de água, / Caindo-me nas mãos desde o início. // O abat-jour, o seu luar fiel, / Insinuando sem amor nem mágoa / A noite que cercou o meu ofício». Resumindo abruptamente, dir-se-ia que estes versos, como as breves e escassas descrições da cena da escrita em Carlos de Oliveira, nos sugerem o escritor como um «escriturário da literatura», essa versão tardo-oitocentista rastreável já no Flaubert de Bouvard et Pécuchet, segundo a qual a dicotomia feliz entre o burocrata e o criador está condenada a fracassar sob a luz crua (a luz eléctrica…) das realidades do «ofício». Por outras palavras, o poeta é um oficiante — notem-se as conotações sacras, e genesíacas, do verso «Caindo-me nas mãos desde o início» — ungido pela epifania… da burocracia, cujo outro nome, ou pseudónimo, seria «literatura». Esta consistiria provavelmente numa vasta corporação de funcionários solitários, assinalados, na escuridão da «fábrica», pelo seu abat-jour fiel. O nome desta fábrica, como já foi sugerido, pode ser literatura ou, mais radicalmente, linguagem.

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Vitória amarga

Não tivesse hoje o virtuosismo má reputação e má imprensa e poderíamos colocar o autor de Antes do Circo no grupo dos autores demasiado sábios do seu ofício. De facto, o mais impressionante nesta recolha é a forma como ela se coloca, aparentemente, no ponto mais tardio de uma certa dialéctica moderna na qual a latência da obra de arte se vai esvaziando em favor de um triunfo do manifesto das formas – e de um triunfo de uma versão da obra, e da Arte, como forma dissimulada, ou contrabandeada, sob temas tendencialmente desprovidos de qualidades ou nulos o bastante para percebermos que se trata de dissimulação e contrabando. Para esta leitura, a epígrafe de Carlyle sob a qual o autor desejou colocar o livro – «Could anything like a story be made?» – parece ratificar os extremos a que a modernidade conduziu a aporia que descobriu, ou melhor: radicalizou, entre «contar» e «história», na medida em que aprendemos, com essa velha senhora, que só há contar e que toda a história é essencialmente, para não dizer «apenas», história do contar, sendo essa a verdadeira epopeia da literatura moderna, votada necessariamente à derrota ou à amarga vitória com que palavras fazem mundo (e eis respondida a pergunta de Carlyle).

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Notas sobre Luís Quintais (V)

Tanto assim que a temporalidade introduzida pela criança só é resgatável em sede mítica e mágica. Porque, de resto, como se diz no poema «Régua», de Angst, «Uma fotografia do teu filho aos dois anos / não é régua com que meças o tempo». A verdadeira régua do tempo é a azagaia do poema «Azagaia, árvore, sombra» do livro de estreia de Quintais, esse «objecto nobre» que, como a sombra da árvore da casa africana da infância «se soltou das contingências de lugar e luz // para viajar no eterno». Esta questão regressa de modo impositivo no grande poema «Breve história do tempo», de Angst, que começa assim:

Vejo numa extensão de líquenes
traços de carros, caminhos
para o que se afigura irrecuperável.

Carros puxados por animais (bois,
Cavalos?) cruzando-se com os 4 por 4
(Land Rover?)

O antropólogo em Quintais lê o tempo na natureza e na inscrição do humano nela: líquenes, sulcos de carros de bois e jipes. Os tempos sobrepõem-se, líquenes e sulcos sobreviver-nos-ão:

Somos interlocutores do eterno,
pensei eu. Todos os tempos se cruzarão

neste lugar como a fúria da ígnea lava
descendo a encosta e revolvendo tempos
em outro lugar. Toda a terra terá

o rosto da mesma terra e a cor
do mesmo movimento. No passado vive o presente
e o futuro, e os carros a tracção animal

cruzam-se sem cessar,
nos limites deste mundo,
com os 4 por 4.

O título borgesiano do poema, destilando a sua peculiar ironia, não se traduz contudo em alegoria, mas antes em imagens: o poeta olha e descreve uma sobreposição de linguagens que são tempos (ou tempos que são inscrições materiais, isto é, linguagens). No seu poema mais adorniano, o já referido «A inútil poesia», e sob o pano de fundo do Holocausto, Quintais aborda as antinomias do «dever de memória» perguntando «Como esquecer? Como não esquecer?» e refere lugares – Varsóvia, Treblinka, aldeias – onde «nomes se perfilam / num vórtice de tempos que se abrem noutros tempos /e gritos se abrem noutros gritos». Em «Breve história do tempo» estamos antes no universo do poema «Nuvens» que propus como entrada nesta poesia. O mundo material cruza e sobrepõe as inscrições de natureza e cultura, problematiza-se e indecide-as: «todos os tempos se cruzarão», «No passado vive o presente / e o futuro». O poeta-antropólogo reage à densidade do mundo com uma espécie de «descrição densa», mas agora em versão não discursiva mas elíptica, vale dizer, por imagens. A imagem, porém, deflagra apenas nos limites – «os carros a tracção animal / cruzam-se sem cessar, / nos limites deste mundo, / com os 4 por 4» – pois é aí que mora a poesia enquanto pressão sobre o visível e improvável ocorrência daquilo que mora no limite do nosso mundo, isto é, para lá dos limites da linguagem (sem esta derrogação de Wittgenstein a poesia tem dificuldade em vir à existência). Esses limites nos quais, ou para lá dos quais, «somos interlocutores do eterno» e nos quais vemos as nuvens que são arrastadas no céu, «violentamente arrastadas, na direcção sudeste, / filtrando a luz do sol em obsessiva correria».

[Texto lido no Centro Cultural de Belém, a 22 de Março de 2008, no âmbito das comemorações do Dia Mundial da Poesia]

Luís Januário, por Robert Walser

No Marktplatz voltei a entrar no café. A turva motivação que me impelira à viagem não se simplificava. Quando Vila-Matas esteve em Herisau foi de Doutor Pasavento e este, embora em vão, fez-se passar por um médico espanhol, um tal Ingravallo. Levava duas daquelas mulheres sem idade nem corpo que de vez em quando aparecem nos seus livros e que, neste caso, o pareciam secretariar. Eu tinha ido com o meu homem exterior, ou com aquele inimigo que julga conhecer-me e que agora, no café alemão, enquanto espero quem prepare um refresco, pergunta baixinho, com um ódio inesperado:

– Terás tu o dom da humildade?

«A humildade em Herisau»: o último avatar do rastro crescente de Walser na literatura contemporânea. Sem mais comentários.

Tabu (I)

Em primeiro lugar: o que é a História? Em segundo lugar: o que é o colonialismo? Em terceiro lugar: o que é a memória? E, na aparência, o pressuposto estável (a tartaruga sobre a qual se apoia o elefante) que permite perguntas e talvez respostas: o cinema enquanto coisa revisitável in totto, desde os primórdios até ao nosso reencantamento fetichista, em formato 1:1,33, a preto e branco e com muito grão.

Uma primeira hipótese de resposta poderia ser: a História é o trabalho de dessincronização de imagem e som; o colonialismo é o Monte Tabu; a memória é um crocodilo de olho «vítreo e glauco», como se aprende na retórica da literatura colonial; e o cinema, por fim, uma coisa rotunda como um elefante, apoiada na ilusão de uma carapaça vetusta.

Podemos começar por aqui. Num dos seus últimos livros, Laura Mulvey nota que, ao contrário do que era o foco do seu trabalho nos anos 70, quando via a vanguarda fílmica como o «oponente binário» do cinema de Hollywood – e da forma como este «construía» a estrela feminina como seu espectáculo último –, a situação contemporânea tinha-a feito perceber que «as estéticas do cinema possuem uma coerência maior ao longo do seu corpo histórico face às tecnologias dos novos média e das novas formas de ver filmes que elas geraram» (p. 7). É essa «coerência de ordem superior» que Tabu nos dá a ver, precisamente por a sua ser, de modo muito deliberado, uma situação pós-histórica ou, se se preferir outra terminologia, entre-imagens. Estou a tentar sugerir que Tabu se poderia renomear, em título ou subtítulo, História(s) do Cinema; e que, nesse sentido, o filme é um dos últimos avatares do rastro godardiano no cinema contemporâneo (Murnau seria aqui o nome para um engodo). Porque não se trata apenas de «citações», ainda que elas abundem. Trata-se sim de relançar o discurso da ontologia da imagem fílmica, que podemos indexar a Bazin, aos Cahiers e à Nouvelle Vague, aqui de novo indexada ao Godard da pergunta e resposta de Le petit soldat (1960): «O que é o cinema?» «A verdade 24 vezes por segundo». Este discurso, que faz do cinema uma ilha, ou um bloco isolado na longa duração de um trabalho em torno da opticidade (os brinquedos ópticos como variante da grande tradição dos brinquedos filosóficos), que hoje se prolonga no 3D ou nos videojogos, ressurge no filme de Miguel Gomes, desde logo naquela posição muito hegeliana segundo a qual a verdade de um fenómeno se vê melhor a partir do seu fim.

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Notas sobre Luís Quintais (IV)

Não surpreende, pois, que num poeta da imagem e da «ficção suprema» da poesia uma palavra recorrente seja «beleza», palavra rara na actual geração de poetas, na sua maioria possuída por um afã dessublimador, aliás muito epocal e em todas as artes. É possível encontrar poemas e títulos como «[Se desconfias da beleza]» (Lamento, 1999), «A demonstração da beleza» (Duelo, 2004) ou, já no primeiro livro, A Imprecisa Melancolia (1995), «Da dificuldade da beleza». Deste poema, extraio alguns versos significativos:

Penso em Ungaretti nas trincheiras
recordando os seus rios: o Isonzo, o Nilo, etc.
Há uma fuga nesta indiferença.
São nobres os exemplos
e exemplar a responsabilidade do alheamento.

Vejo um campo devastado dentro de mim,
a Torre da Canção erguendo-se sobre as ruínas da tranquilidade
que me cerca.

A beleza é difícil.

A dificuldade de erguer a Torre da Canção que Quintais vai buscar a Leonard Cohen é antes de mais ética ou ético-política – podíamos dizer que é adorniana – e, nesse sentido, atravessa a sua poesia toda. Ungaretti opera por uma espécie de combate terapêutico, recordando os seus rios para se evadir das trincheiras, reivindicando a indiferença e o alheamento ante a barbárie; o sujeito do poema de Quintais parece confrontar-se com uma outra devastação, de tipo interior, que não lhe permite alheamento, e erguer sobre ela a sua precária Torre da Canção, de duvidoso valor terapêutico. A beleza é sem garantia, individual ou social, e, tal como a memória, parece condenada ao desgaste irreversível. Num poema também do seu primeiro livro, «A simetria de uma manhã de Março», o poeta refere uma tela de Harue Koga, pintor japonês, recortada de uma página de uma revista Time, já antiga. E nota:

Perdi a folha bem dobrada no fundo dos bolsos
da memória. Que nada se salve

deste pequeno nada! Que a imagem se esboroe
antes de ser tocada. Só no poema deixo inscrita
a simetria de uma manhã de Março.

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Notas sobre Luís Quintais (III)

É talvez altura de definir Quintais como um poeta da imagem. Os seus poemas quase sempre se estruturam em torno de uma imagem central, de natureza vária mas de uma qualidade de imaginação rara e, muitas vezes, surpreendente. Exemplifico com um poema de Umbria (1999), «Cedros dos Himalaias»:

São vários os conceitos que me movem.
Um gesto abstracto desfila na imaginação:
sobre o azul, os cedros dos Himalaias.

É este o jardim de tarde que procuro.
Um lugar de intensa luz que cegue rotinas,
repetidos esquemas de pensamento.

A mesma luz até à renovada frase.
Transportem-se cedros dos Himalaias
pela imaginação adentro,

e a imensa realidade tornar-se-á
desabitável, desabituável,
repleta de conceitos que nos movam.

Todo o poema deriva dos versos 2 e 3: «Um gesto abstracto desfila na imaginação: / sobre o azul, os cedros dos Himalaias». Face a esta imagem, este «lugar de intensa luz», as rotinas e os esquemas repetidos cegam. Habitada a imaginação pelos «cedros dos Himalaias» a realidade torna-se «desabitável, desabituável». Não é preciso mais para percebermos a lógica de uma poética centrada no poder irradiante da imagem, tal como em Wallace Stevens. Mas gostava de notar o declarado carácter conceptual e abstracto da proposta imagética: «São vários os conceitos que me movem. / Um gesto abstracto desfila na imaginação». No fim do poema, consumada a deflagração da imagem na nossa percepção, o conceito regressa em forma populosa: a realidade torna-se então «repleta de conceitos que nos movam». Não parece haver aqui conflito entre o carácter necessariamente concreto da imagem e o gesto abstracto da sua motivação e composição: os cedros dos Himalaias são a beleza imotivada e plena. Um poema produzido por essa imagem, composto em função dela e para ela, é a poesia como arte sem justificação. Como «ficção suprema», enfim.

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Sobre um dos «Crimes Exemplares» de Max Aub

É um dos micro Crimes Exemplares de Max Aub: um daqueles que coincidem com uma frase, sem contextualização nem descrição de personagens, produzindo uma redução de mundo que é também, muitas vezes, uma abrupta redução de razões. Não é todavia o caso, já que o conto em pauta (ou melhor, a «confissão»: não esquecer que é sob esta figura da antiguidade jurídica e cristã que Aub coloca estes crimes de exemplo) se esgota na produção da razão. Cito-o da edição portuguesa (p. 21):

Matei-o porque tinha a certeza de que ninguém estava a ver.

Note-se que na edição ilustrada que a Antígona entretanto publicou, em 2008, importada das edições Media Vaca, a tradução não coincide no final da frase – «…ninguém me estava a ver» -, situação recorrente no livro e porventura atribuível a uma intervenção da revisora, Carla da Silva Pereira, sobre a tradução de Jorge Lima Alves. Em espanhol, aqui (p. 23), o texto é o seguinte:

Lo maté porque estaba seguro de que nadie me veía.

E é tudo: nenhuma descrição do morto, da situação (o onde e o quando) do homicídio, sequer da arma do crime e do modus operandi (o como). Apenas um (aparente) discurso de razões: «porque tinha a certeza de que ninguém me estava a ver». O crime é, pois, suficientemente despragmatizado para poder ser deslocado ao longo da montanha-russa da História do Crime, da antiguidade pré-helénica à Alemanha de Fritz Lang e aos EUA de Al Capone e Bernard Madoff, digamos. Duvido porém que possa ser despragmatizado a ponto de o excluirmos das fronteiras da «Civilização Ocidental».

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Notas sobre Luís Quintais (II)

É difícil resistir a citar aqui alguns versos de um poema de Angst, «Uma inocência», em que, a partir de uma imagem central de aves devorando lixo em sacos de plástico negro, Quintais resume tudo isto em modo cáustico:

O que faz a poesia?
Remir por certo tipo de palavras

certo tipo de coisas certo tipo
de asas flap flap flap certo tipo
de razões desesperadas.

A poesia faz «certo tipo de» coisas: note-se a linguagem antifundacional, que se abstém de dar nomes a «coisas» e «razões», recuando ante a vastidão de tais «coisas» e «razões» e, ao mesmo tempo, não contribuindo com mais uma acha para a fogueira desmesurada de versões mais ou menos legiferadoras da Poesia no concerto das linguagens e modos de fazer mundos.

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Jean Giraud / Moebius (1938-2012)

Paisagens neuronais, o étnico sobreposto ao trash (metal), rochedos megalíticos em levitação, o arcaísmo do fóssil em versão protésica e maquínica, o delírio morfo(zoo)lógico, a miúda nitidez das trips. E, antes, Blueberry, a dura lição do filho pródigo, o primo americano que gostaríamos de ter, o sangue, a sujidade e a infâmia dos combates pela história. A heteronímia explicada às massas?

«Poesia Dita», em 1966, e «espectacularizada» em 1969

O documento (que poderá ver melhor clicando na imagem) consta do recente livro de Duarte Belo, O Núcleo da Claridade. Entre as palavras de Ruy Belo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2011, p. 135. Reproduzo-o aqui a título de contribuição para o estudo desse continente submerso da história da poesia na modernidade: o da sua leitura pública. Em voz alta, claro. Pois como dizia Changuito, na entrevista que há pouco deu a este blog,

há muita gente que ilumina o que lê, que me parece ser a principal função de quem o faz publicamente. Alguns casos: Richard Burton lendo Gerard Manley Hopkins e John Donne; Chico Anysio lendo Ascenso Ferreira. Autores como Mário Cesariny, Dylan Thomas, Jorge Luis Borges, Gertrude Stein, León Felipe, Allen Ginsberg, Antonio Cicero, Sylvia Plath, Herberto Helder, entre outros, lendo-se trazem claridade ao meu entendimento. Muito frequentemente ouço e volto a ouvir Galáxias, de Haroldo de Campos, o livro milagre do qual ele gravou, creio, 16 faixas/poemas. Mas, creio, a memória mais antiga de ouvir alguém que não me era próximo a dizer-se terá sido, aos dezoito ou dezanove anos, João Cabral de Melo Neto. A poesia dele pareceu-me imediatamente mais compreensível.

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Os Bonecos de Santo Aleixo ou «nós, o Povo» e o Estado

Sábado, 18 de Fevereiro, ao fim da tarde, Teatro da Cerca de S. Bernardo, espectáculo dos Bonecos de Santo Aleixo. Casa cheia, crianças em bom número, em rigor público dos 7 aos 77. O sucesso de sempre, justificadamente. O grande teatro do mundo em formato de bolso, o cristianismo espontâneo de milénios agora em divertimento para miúdos sem catequese, a quarta parede visível em forma de gradeamento que afinal é cordame (e a sabotagem da quarta parede na interpelação a elementos do público), a ilusão cénica com um sorriso mais ou menos rasgado, o cromatismo de que a cultura erudita desconfia, o pé que descamba facilmente na ordinarice «pimba» e que afinal – mais-valia pedagógica da tradição – vem de longe, o robusto primitivismo dos arquétipos e a celebração da pura dépense, enfim, o localismo idiomático, signo maior de um trabalho sobre o património como «reserva natural» do pobre. E ainda, suplemento obrigatório, o deslumbramento com que, findo o espectáculo, somos conduzidos aos bastidores, ou melhor, às traseiras esventradas da cena e da sua impressionante instrumentação low tech. A sensação, tão incorrecta quanto justa, de que se pode produzir um grande espectáculo a partir de «uma coisa de nada».

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«Uma inscrição», de José Ángel Valente

Foi em Roma,
onde havia naquela época
grandes concentrações de capital
e massas operárias com escassas possibilidades de subsistir.

Os poetas não registaram o problema,
porque Roma deve ter sido uma alegre cidade
nos tempos de Nero,
Aenobarbo, parricida,
poeta de ínfima qualidade.

Alguns homens simples
envenenaram as fontes
e opuseram-se ao regime oficial.

Homens acaso como este
que jaz em paz,
trabalhador de humildes mesteres
ou, talvez, mercador. Um dia
foi-lhe comunicada
certa possibilidade de sobreviver.
(Ignora-se se foi sacrificado
por semelhante crime.)
Não obstante, morreu; quer dizer, soube
a verdade. Piedosamente
repito estas palavras
sobre a pedra escritas
com igual vontade:
«Alegre permanece, Tácio,
amigo meu,
ninguém é imortal».

«Una inscripción» integra o primeiro livro do poeta espanhol José Ángel ValenteA modo de esperanza, de 1954. Publico esta tradução em homenagem aos 4 anos do blog Do trapézio, sem rede, de Luís Filipe Parrado. Tanto mais que, ao que julgo, Valente não consta dos autores traduzidos no blog neste período.

Post Scriptum: «Lição de gramática», de Berta Piñan, por Luís Filipe Parrado

Carlos de Oliveira no Museu do Neo-Realismo

[Texto lido no passado dia 11 de Fevereiro de 2012 no Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira, aquando da cerimónia de assinatura do contrato de doação do espólio de Carlos de Oliveira ao museu]

É-me muito difícil dispensar uma nota pessoal no dia de hoje, atendendo ao motivo que aqui nos traz. Porque há, desde logo, uma pessoa que hoje aqui não pode estar, uma pessoa que contudo, para todos os que nalgum ponto do seu interesse pela obra de Carlos de Oliveira se cruzaram alguma vez com ela, está e estará sempre connosco quando falamos de Carlos de Oliveira: Ângela de Oliveira, renomeada como Gelnaa ou Anne Gall no interior dessa mesma obra e personagem maior dela, ou melhor, da sua própria edificação. Várias das pessoas que aqui estão hoje, e seguramente que muitas outras, sabem que para Ângela a questão do destino a dar ao espólio de Carlos de Oliveira foi uma obsessão alimentada desde o dia seguinte ao dia 1 de Julho de 1981. Ou melhor: uma missão a que se votou sem desfalecimentos, apesar das dificuldades que o mundo ergue, hoje e sempre, no caminho de quem busca preservar a memória daqueles que desejaram confundir o seu destino com o das palavras da tribo.

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Na sala de aula: Joaquim Manuel Magalhães (II)

Passo agora a transcrever o poema da sala de aula, inicialmente editado em Segredos, Sebes, Aluviões, tal como Joaquim Manuel Magalhães o recupera em Um Toldo Vermelho (Relógio d’Água, 2010, p. 154), obra na qual inclui o que considera recuperável da sua produção poética:

Num acanhado apontamento
pergunta a tabuada.

A reza de números, a regente
indaga de seguida
numa página coçada
gramática.

O arroubo, o ilógico
elemento decorado,
um pronome pessoal que laço
a um colega miudinho,
ígneo arrojo.

Não vale a pena fingir que se pode ler este poema sem a leitura contrastiva que a sua história solicita. É certo que se o leitor agora chegado à poesia de JMM ler Um Toldo Vermelho como a Obra, dispensará provavelmente tudo aquilo que, lá para trás, faz antes desta obra uma súmula. Nesta versão, a Obra não seria mais do que um privilégio do amnésico. Contudo, o problema maior da súmula da Obra a que o autor deu o nome, também ele «em versão curta» e por isso falsamente amnésica, Um Toldo Vermelho (título que recupera e ao mesmo tempo corta Uma luz com um toldo vermelho, livro de 1990), reside no envio para a memória que cada poema sobrevivente à poda produzida pelo autor põe, como que necessariamente, em marcha.

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Na sala de aula: Joaquim Manuel Magalhães (I)

O poema, encimado pelo número 41 (o livro, no total, tem 51 poemas), integra o volume Segredos, Sebes, Aluviões, que Joaquim Manuel Magalhães publicou na colecção Forma, da Editorial Presença, em 1985. Ou integrava, já que é um dos muitos poemas profundamente refundidos na versão, aparentemente final, da obra poética do autor editada na Relógio d’Água em 2010 com o título Um Toldo Vermelho, versão essa na qual o volume de 1985 perde o plural, intitulando-se agora Segredo, Sebe, Aluvião. Em todo o caso o poema publicado no livro de 1985 persiste, sendo a questão filológica, em rigor, improcedente para os fins que aqui se perseguem. Deixo para depois uma breve análise da versão de 2010 e passo à transcrição do poema:

Sentava-me num banco corrido,
o livro fechado nos joelhos.
A D. Lídia vinha com um xaile
e perguntava-me a tabuada.
A água das regas corria numa vala.

Depois da reza dos números,
voltava-se para um outro aluno
e ensinava-lhe gramática.
Eu ouvia e o êxtase
cerrava-se numa tosca cantilena
daqueles sons mal decorados.

Teriam sido os pronomes pessoais
ditos pelo rapazinho que esqueci
o meu primeiro poema?

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A autora com a edição nas mãos

A foto aparece no blog da Tea for One com a seguinte legenda: «Inês Dias com o pleno da edição de ‘Em caso de tempestade este jardim será encerrado’ (foto de Marta Chaves)». Inês ri mas percebemos que o volume ainda pesa e não dá muito jeito a transportar; e o autor do post e editor, Miguel Martins, ri-se manifestamente com a legenda que escreveu para a foto que Marta Chaves tirou, enquanto (de certeza) esta dizia a Inês para se rir para o passarinho.

Eis, pois, a diferença empírica entre um livro de poesia e um romance: a edição do romance não caberia num pacote transportável pelo autor. Seria caso para perguntar, entretanto, o que justifica, na era do digital, esta insistência na edição do «livro de poesia». O romance, é sabido, está a acompanhar a grande migração do livro para o e-book, seguido de perto pelo ensaio. O livro infantil será a próxima vítima, seguramente, já que a interactividade activada pela ilustração e pela relação entre esta e o texto só ganhará com a passagem a uma plataforma que permita inflacionar a dimensão lúdica do objecto. O iPad é um instrumento decisivo nesta migração, já que tudo aquilo que se dizia serem os trunfos do formato «códice» – saltos para a frente e para trás na leitura, anotações, etc. – é permitido pelo tablet, que ainda introduz novas e impressionantes valências na área do «manuseio» da obra. E contudo, na remota aldeia da poesia um punhado de gauleses resiste até ao fim…

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Na sala de aula

Na sala de aula (1985) é o título de um pequeno livro de Antonio Candido, mestre e decano dos estudos literários brasileiros. De intenção assumidamente didáctica, o livrinho, despretensiosamente subintitulado «Caderno de análise literária», é um manual de análise de poemas sem um real equivalente em Portugal, o que só se pode lamentar.

«Na sala de aula» será o título de uma rubrica na qual se explorará, num corpus alargado de textos extraídos das literaturas de língua portuguesa, a representação da cena primitiva do encontro com o texto literário na sala de aula, esse local tão amado como mal amado, tão desmitificado como resistente à desmitificação. Estará em pauta uma certa arqueologia do ensino da literatura, sem contudo se aspirar à produção de uma narrativa de fundação ou legitimação. Os exemplos serão apresentados sem curar da sua cronologia (tanto mais que o corpus se encontra ainda em formação) ou do seu lugar numa  das muitas histórias que a partir deles se poderiam contar. Confiar-se-á antes no poder iluminador da justaposição descontínua de episódios de uma história cuja longa duração será revisitada no seu momento moderno. Sem nostalgia mas também sem renunciar ao poder formativo do encontro com o texto literário, nesse local tão incompreendido mas onde, por um raro privilégio, o mundo se interrompe para que, por intermédio da voz de um outro (poeta, ficcionista, dramaturgo), a nossa voz se afine e afirme: a sala de aula.

Notas sobre Luís Quintais (I)

Não sei se esta é a melhor porta de entrada na poesia de Luís Quintais, mas em todo o caso é a que proponho. Refiro-me ao poema «Nuvens», do livro Duelo, de 2004, um dos dois livros que, no início da década anterior, colocaram Quintais na linha da frente da poesia portuguesa actual, sendo o outro Angst, de 2002. Transcrevo o poema:

Nuvens

A metafísica será talvez
uma indisposição que se quer passageira.

Porém, eu continuo a inquietar-me
com as nuvens que são arrastadas,

violentamente arrastadas, na direcção sudeste,
filtrando a luz do sol em obsessiva correria.

O poema concentra toda a arte de Quintais: o teor alusivo e elusivo; a composição irónica na passagem de um enunciado genérico e abstracto a um pormenor descritivo que não parece corroborar o enunciado mas se justapõe a ele e nos desafia ao estabelecimento dessa relação, ou melhor, ao sentido dessa relação; o estranho impacto emotivo de certas imagens; e ainda, e crescentemente nos últimos livros, embora em rigor desde o início, a sombra do poeta norte-americano Wallace Stevens. James Merrill dizia, de Stevens, que a sua poesia era uma «filosofia involuntária», uma especulação verbal sobre a realidade e sobre a natureza da relação da linguagem, e da linguagem do verso, com ela. Quintais é um poeta dessa família, embora a sua condição pós-metafísica se denuncie naquela qualificação segundo a qual «A metafísica será talvez / uma indisposição que se quer passageira». A crítica, estranhamente, tende a ler estes versos como sintoma de gravitas, descurando a ironia, mais drummondiana que pessoana, desta «indisposição passageira», que é também um envio para os neo-positivistas vienenses, e ainda para o primeiro Wittgenstein, segundo os quais a metafísica era não tanto uma indisposição mas consequência de uma «má colocação» ou, se se preferir, de uma «má posição» durante, digamos, o almoço… O importante não é tanto o «talvez» que introduz a indisposição, mas sim o «Porém» que, no início do terceiro verso, contesta o prestígio pós-metafísico da dúvida introduzida pelo «talvez»: «Porém, eu continuo a inquietar-me», que é como quem diz, nem a destruição nem a desconstrução da metafísica nos dispensam da inquietação propriamente metafísica, pela razão simples de que não podemos «continuar», ainda que no sentido da insistência de um Beckett, para quem só nos restava justamente «continuar», mesmo que sem a caução de um sentido, transcendental ou não, ou seja, não podemos viver sem a inquietação da metafísica.

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