Vitória amarga

Não tivesse hoje o virtuosismo má reputação e má imprensa e poderíamos colocar o autor de Antes do Circo no grupo dos autores demasiado sábios do seu ofício. De facto, o mais impressionante nesta recolha é a forma como ela se coloca, aparentemente, no ponto mais tardio de uma certa dialéctica moderna na qual a latência da obra de arte se vai esvaziando em favor de um triunfo do manifesto das formas – e de um triunfo de uma versão da obra, e da Arte, como forma dissimulada, ou contrabandeada, sob temas tendencialmente desprovidos de qualidades ou nulos o bastante para percebermos que se trata de dissimulação e contrabando. Para esta leitura, a epígrafe de Carlyle sob a qual o autor desejou colocar o livro – «Could anything like a story be made?» – parece ratificar os extremos a que a modernidade conduziu a aporia que descobriu, ou melhor: radicalizou, entre «contar» e «história», na medida em que aprendemos, com essa velha senhora, que só há contar e que toda a história é essencialmente, para não dizer «apenas», história do contar, sendo essa a verdadeira epopeia da literatura moderna, votada necessariamente à derrota ou à amarga vitória com que palavras fazem mundo (e eis respondida a pergunta de Carlyle).

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Guimarães Rosa lido por Clara Rowland

Um livro sobre Guimarães Rosa é sempre um acontecimento. Porque não pode deixar de ser a celebração de uma ideia forte de literatura, de escrita e de livro. Mais ainda se a sua autora for Clara Rowland, professora de literatura brasileira na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e se o livro tiver a chancela de duas das grandes editoras universitárias do Brasil, a editora da Unicamp e a EduspA Forma do Meio, agora mesmo publicado, é um desses casos, pelo que só temos razões para nos alegrarmos com esta edição, tanto mais que ela surge no momento em que o grande livro de Carlos Mendes de Sousa sobre Clarice Lispector é enfim editado no Brasil, o que cria um contexto realmente novo para o estudo da literatura brasileira em Portugal. Como incentivo à leitura do livro de Clara Rowland, eis as palavras que Abel Barros Baptista escreveu para o verso da capa:

A forma do meio é um estudo sobre a obra de Guimarães Rosa que enfrenta em novos termos problemas decisivos e complexos como a relação da forma do livro e do romance com a oralidade e a narrativa tradicional. Isso chegaria a sublinhar a importância deste trabalho notável. Mas há ainda a enorme inteligência da análise de uma questão, a do livro, que, sendo crucial na obra de Rosa, está praticamente ausente na sua fortuna crítica. Não se trata apenas de mais um ensaio sobre Rosa: não só não recusa a tradição de leitura, como nela se integra de modo que obriga a repensá-la radicalmente. É, em suma, um daqueles maravilhosos sobressaltos que fazem o destino da grande literatura.

«História Natural», Carlos Drummond de Andrade

Cobras cegas são notívagas.
O orangotango é profundamente solitário.
Macacos também preferem o isolamento.
Certas árvores só frutificam de 25 em 25 anos.
Andorinhas copulam no vôo.
O mundo não é o que pensamos.

Carlos Drummond de Andrade, in Corpo, RJ, Record, 2002, p.33.

«A arte de profanar: A poesia submersa de Roberto Piva», por Renan Alves de Souza

Publicado originalmente em 1963, com o trabalho fotográfico de Wesley Duke Lee, Paranóia, de Roberto Piva (1937 – 2010), na altura de sua publicação, foi recebido com resistência, frieza e indiferença pela crítica. Apenas na antologia 26 poetas de Hoje, de Heloísa Buarque de Holanda, o poeta teve alguma repercussão, ao apresentar a poesia marginal como novidade. Piva reagiu violentamente contra o que seria o objecto da poesia concreta, a modernização brasileira, mantendo-se em “seu mundo delirante” e assumindo a sina de poeta maldito, individualista e com espírito anárquico. O escatológico, o pornográfico, o grotesco, o sublime, e o maravilhoso são temas recorrentes que permeiam a sua poesia, e que reforçam a comparação com Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, ao evocar o mal e a “destruição de tudo que é frágil”. O próprio poeta assume a impiedade em versos como “eu não sou piedoso, eu nunca poderei ser piedoso” e a todo tempo manifesta sua agressividade contra tudo e contra todos sob a luz de uma figura errante e solitária e ao mesmo tempo o mais frágil e desamparado dos seres: “no exílio onde padeço angústia os muros invadem minha memória”.

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Um acontecimento: Clarice Lispector por Carlos Mendes de Sousa, em edição do Instituto Moreira Salles

A primeira edição da obra – Clarice Lispector: Figuras da Escrita -, pelo CEHUM, data de 2000. Agora, mais de uma década volvida, uma década na qual a obra foi crescendo em relevância, tornando-se uma peça central do corpus crítico sobre Clarice, o grande livro de Carlos Mendes de Sousa (vencedor do Grande Prémio de Ensaio da APE) acaba de ser editado no Brasil, sob a prestigiosa chancela do Instituto Moreira Salles. O lançamento será no próximo dia 8, na sede do IMS no Rio de Janeiro, com a presença do autor, que antes do lançamento dará uma aula, nesse mesmo dia, no curso Clarice Lispector: uma aprendizagem, sobre «Ler e reler Clarice». Reproduzimos acima página da Folha de S. Paulo sobre a obra, edição de 25 de Fevereiro último. O assunto foi capa do caderno cultural do jornal.

Caso para dizer: a justiça por vezes tarda, mas chega. Alegremo-nos, pois.