Música
Michel Giacometti e os GNR, segundo João Aguardela
Paula Guerra ― Se eu lhe pedir dois nomes de músicos de referência, que marcam o panorama musical, quais é que me diz?
João Aguardela ― Dois? Se calhar vou dar-te o nome de um não-músico, que é o Michel Giacometti. Realmente, tudo o que foi acontecendo no meu percurso foi acontecendo de uma forma mais ou menos natural, as coisas foram levando umas às outras. Exceto talvez isto, que foi quando eu tive contacto pela primeira vez com as recolhas que o Michel Giacometti tinha feito. O conhecimento que eu tinha da música portuguesa era intuído. Era em segunda mão, era pelos ranchos folclóricos, pelo fado, pelos grupos de música popular portuguesa. Portanto, sempre em segunda mão. E por outro lado, pela intuição que eu tinha do que era a música portuguesa. E quando eu tropecei, literalmente… estou a falar dum disco do Michel Giacometti com recolhas do Alentejo, que estava à venda na Feira da Ladra. Eu tropecei no disco, achei a capa engraçada e comprei o disco por causa da capa, mais nada. Quando ouvi o disco tive o flash da minha vida. Finalmente tive acesso directo às fontes, àquelas pessoas que cantam porque sim, ou tocam porque sim, porque aquilo faz parte da vida delas. E que, por outro lado, são depositárias de uma tradição ininterrupta que já vinha de há muitos anos atrás. Tenho de citar o Giacometti, porque foi ele que recolheu essa música e foi ele que me proporcionou o contacto com essa música. Aí sim, em termos criativos, teve muita importância naquilo que eu acabei por fazer a seguir. Outra, mais para trás: tenho de dizer os GNR. Porque os GNR, com os seus dois álbuns essenciais, que são o Defeitos Especiais e Os Homens Não Se Querem Bonitos, que é onde está aquele tal equilíbrio entre a identidade deles e aquilo que eles ouviam e de que gostavam e o que se passava lá fora. São dois discos tão bem equilibrados que eu acho que são absolutamente paradigmáticos do que poderia ser, ainda hoje, uma Pop portuguesa. Não quer dizer que copiássemos todos os GNR até à exaustão, mas está ali uma pista muito importante, pelo menos para mim foi importantíssima, de como se pode conceber uma Pop, e chamar-lhe portuguesa com propriedade. Os GNR e o Michel Giacometti.
Ricardo Alexandre, João Aguardela. Esta Vida de Marinheiro, Vila do Conde, Quidnovi, 2011, pp. 175-176.
Quem não regressaria, ao apelo de uma voz assim?
Cantar em inglês ou cantar em português, segundo João Aguardela
Paula Guerra ― Os projectos novos que surgem não têm essa especificidade, essa identidade. Falta essa referência.
João Aguardela ― Pois, não têm, e nem sequer os posso culpar por isso, porque nem sequer têm referências para a ter. Por exemplo, se eu tivesse agora vinte anos e fosse um consumidor cultural normal, de ir aos bares do costume, os bares que estão abertos em Lisboa, ver um filme, ir ao cinema ver os filmes que estão em cartaz, ver a televisão que temos e ouvir a rádio que temos, obviamente que tinha pouquíssimas referências do que é que podia ser a música portuguesa. Eu penso que é isso que se passa. Por um lado, ninguém tem vontade de viver outras experiências. E por outro lado, o que se passa é que as pessoas não têm pura e simplesmente referências para fazer outra coisa. E, nesse sentido, acho que é o típico fenómeno de aculturação. Tens uma cultura dominante, que é a cultura anglo-americana, e que nos esmagou, ao longo destes últimos anos que têm vindo a decorrer. Por exemplo, existe uma discussão muito interessante à volta de cantar em inglês ou cantar em português. Acho que é uma discussão interessante. Começo já por dizer que para mim é igual, é indiferente. Nem sequer acho que o problema esteja aí. Mas é um exemplo engraçado. Um dos argumentos utilizados para os músicos portugueses cantarem em inglês é a liberdade de expressão. Tens gente, que escreve nos jornais há muitos anos, que defende essa posição. A música portuguesa tem de ser como a música lá de fora, e quando os músicos portugueses decidem cantar em inglês, é uma questão de liberdade de expressão, é uma expressão de liberdade artística. Mas isso é falso. Seria uma questão artística se esses mesmos músicos tivessem liberdade de escolha. O problema é que já não têm. Portanto, aí, o argumento cai por terra. Se eu conhecesse as raízes da música portuguesa, e depois decidisse ir fazer trash metal cantado em inglês, sim senhor, foi uma escolha minha. Agora, se eu toda a minha vida só conheci aquela realidade, que neste exemplo é o trash metal, não tenho grandes hipóteses de exercer uma escolha realmente livre. E é isso que eu penso que se passa hoje em dia.
Ricardo Alexandre, João Aguardela. Esta Vida de Marinheiro, Vila do Conde, Quidnovi, 2011, pp. 171-172.