ja’pu’vawqoy


puqloDwI’ ja’pu’vawq Dayep
pe’vIl chop Ho’Du’Daj; pe’vIl Suq pachDu’Daj
Ha’DIbaH puv juchyub yIyep
bInDepSuHach vaQeHmuS ghombe’ DanIDjaj

‘etlhDaj veSpatlh HujtaH ghopDaj–
jagh HoSlaw’ law’ veqlargh Hos puS! nIteb nej nI’
vaj Sor tamtam, ghaH retlhDaq Qam
nI’be’ leSlI’ ghah (Sor retlhDaq) ‘ej ghaH QublI’

Tradução (incompleta) para o idioma do Império Klingon por Keith Lim

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Chabbawaaki

Bilillik onahma_, tofi alhiihat waybi no_tama_
Kayli-chah kimbala-sh ma_yattook.
Bolokoofat mimsit tahanah
Laalhi alhiilha moomat pit kalabattook.

Tradução fragmentária para choctaw (idioma dos nativos americanos dos estados do sudeste: Mississippi, Florida, Alabama e Luisiana) por Aaron Broadwell

‘Armário de especiarias e ervas aromáticas’

Cerefólio manjerona
malagueta benjoim
noz-moscada cardamomo
salsa sândalo alecrim

erva-doce piripiri
cravinho canela em pau
gengibre menta tomilho
pimpinela colorau

mostarda pó de chili
salva cominhos pimenta
basílico salsifri

zimbro funcho açafrão
orégãos coentros caril
azedas louro estragão

Jorge Sousa Braga, O Segredo da Púrpura (1991)

«Aniversário», José Ángel Valente

Não compreenderás
para que é que voltei.
Talvez, aí deitada,
não compreendas
nada do que vive.
Voltei, apesar de tudo,
para falar-te outra vez.
(Está molhada
e limpa a colina.)
Ainda te vejo
com o rosto de sempre
e os cabelos, em seu reino
de fumo, algo encanecidos.
Não tenho olhos
para mais. Não és
talvez assim e é isso a morte.

Voltei para te falar.
Estou aqui. Não compreendes
nada. Esqueci-te
tanto e consegui
esquecer-te tão pouco.
Estou alegre: às vezes
não me recordo de ti
(também isso é a morte?).
Não sei se me compreendes,
nem sequer
se estás aqui ou deslizas
por um ar que nunca
pesou sobre a minha boca.

(A colina, apesar de tudo,
está quieta debaixo do céu
tal como dantes.)
Mas ouve-me se puderes.
Num dia como o de hoje
caiu a neve,
arrebatadora. Eu cumpro,
inutilmente, o rito. Mas não importa;
não podes compreender-me.
Tudo foi cortado.

Poema incluído em A modo de esperanza (1954). Tradução de OMS.

Notas sobre Luís Quintais (V)

Tanto assim que a temporalidade introduzida pela criança só é resgatável em sede mítica e mágica. Porque, de resto, como se diz no poema «Régua», de Angst, «Uma fotografia do teu filho aos dois anos / não é régua com que meças o tempo». A verdadeira régua do tempo é a azagaia do poema «Azagaia, árvore, sombra» do livro de estreia de Quintais, esse «objecto nobre» que, como a sombra da árvore da casa africana da infância «se soltou das contingências de lugar e luz // para viajar no eterno». Esta questão regressa de modo impositivo no grande poema «Breve história do tempo», de Angst, que começa assim:

Vejo numa extensão de líquenes
traços de carros, caminhos
para o que se afigura irrecuperável.

Carros puxados por animais (bois,
Cavalos?) cruzando-se com os 4 por 4
(Land Rover?)

O antropólogo em Quintais lê o tempo na natureza e na inscrição do humano nela: líquenes, sulcos de carros de bois e jipes. Os tempos sobrepõem-se, líquenes e sulcos sobreviver-nos-ão:

Somos interlocutores do eterno,
pensei eu. Todos os tempos se cruzarão

neste lugar como a fúria da ígnea lava
descendo a encosta e revolvendo tempos
em outro lugar. Toda a terra terá

o rosto da mesma terra e a cor
do mesmo movimento. No passado vive o presente
e o futuro, e os carros a tracção animal

cruzam-se sem cessar,
nos limites deste mundo,
com os 4 por 4.

O título borgesiano do poema, destilando a sua peculiar ironia, não se traduz contudo em alegoria, mas antes em imagens: o poeta olha e descreve uma sobreposição de linguagens que são tempos (ou tempos que são inscrições materiais, isto é, linguagens). No seu poema mais adorniano, o já referido «A inútil poesia», e sob o pano de fundo do Holocausto, Quintais aborda as antinomias do «dever de memória» perguntando «Como esquecer? Como não esquecer?» e refere lugares – Varsóvia, Treblinka, aldeias – onde «nomes se perfilam / num vórtice de tempos que se abrem noutros tempos /e gritos se abrem noutros gritos». Em «Breve história do tempo» estamos antes no universo do poema «Nuvens» que propus como entrada nesta poesia. O mundo material cruza e sobrepõe as inscrições de natureza e cultura, problematiza-se e indecide-as: «todos os tempos se cruzarão», «No passado vive o presente / e o futuro». O poeta-antropólogo reage à densidade do mundo com uma espécie de «descrição densa», mas agora em versão não discursiva mas elíptica, vale dizer, por imagens. A imagem, porém, deflagra apenas nos limites – «os carros a tracção animal / cruzam-se sem cessar, / nos limites deste mundo, / com os 4 por 4» – pois é aí que mora a poesia enquanto pressão sobre o visível e improvável ocorrência daquilo que mora no limite do nosso mundo, isto é, para lá dos limites da linguagem (sem esta derrogação de Wittgenstein a poesia tem dificuldade em vir à existência). Esses limites nos quais, ou para lá dos quais, «somos interlocutores do eterno» e nos quais vemos as nuvens que são arrastadas no céu, «violentamente arrastadas, na direcção sudeste, / filtrando a luz do sol em obsessiva correria».

[Texto lido no Centro Cultural de Belém, a 22 de Março de 2008, no âmbito das comemorações do Dia Mundial da Poesia]

Antiguidades de hoje (VII)

Epigrama

Uma criança inocente
A um padre «papá» chamava,
E a mãe – do marido ausente –
Com a criança ralhava:

Castiga o marido, um dia,
Do inocente a singeleza,
E brada o padre, que o via:
«Deixe obrar a natureza!»

Faustino Xavier de Novais, Novas Poesias, Porto, Ernesto Chardron, Editor, 1881.

«História Natural», Carlos Drummond de Andrade

Cobras cegas são notívagas.
O orangotango é profundamente solitário.
Macacos também preferem o isolamento.
Certas árvores só frutificam de 25 em 25 anos.
Andorinhas copulam no vôo.
O mundo não é o que pensamos.

Carlos Drummond de Andrade, in Corpo, RJ, Record, 2002, p.33.

Notas sobre Luís Quintais (IV)

Não surpreende, pois, que num poeta da imagem e da «ficção suprema» da poesia uma palavra recorrente seja «beleza», palavra rara na actual geração de poetas, na sua maioria possuída por um afã dessublimador, aliás muito epocal e em todas as artes. É possível encontrar poemas e títulos como «[Se desconfias da beleza]» (Lamento, 1999), «A demonstração da beleza» (Duelo, 2004) ou, já no primeiro livro, A Imprecisa Melancolia (1995), «Da dificuldade da beleza». Deste poema, extraio alguns versos significativos:

Penso em Ungaretti nas trincheiras
recordando os seus rios: o Isonzo, o Nilo, etc.
Há uma fuga nesta indiferença.
São nobres os exemplos
e exemplar a responsabilidade do alheamento.

Vejo um campo devastado dentro de mim,
a Torre da Canção erguendo-se sobre as ruínas da tranquilidade
que me cerca.

A beleza é difícil.

A dificuldade de erguer a Torre da Canção que Quintais vai buscar a Leonard Cohen é antes de mais ética ou ético-política – podíamos dizer que é adorniana – e, nesse sentido, atravessa a sua poesia toda. Ungaretti opera por uma espécie de combate terapêutico, recordando os seus rios para se evadir das trincheiras, reivindicando a indiferença e o alheamento ante a barbárie; o sujeito do poema de Quintais parece confrontar-se com uma outra devastação, de tipo interior, que não lhe permite alheamento, e erguer sobre ela a sua precária Torre da Canção, de duvidoso valor terapêutico. A beleza é sem garantia, individual ou social, e, tal como a memória, parece condenada ao desgaste irreversível. Num poema também do seu primeiro livro, «A simetria de uma manhã de Março», o poeta refere uma tela de Harue Koga, pintor japonês, recortada de uma página de uma revista Time, já antiga. E nota:

Perdi a folha bem dobrada no fundo dos bolsos
da memória. Que nada se salve

deste pequeno nada! Que a imagem se esboroe
antes de ser tocada. Só no poema deixo inscrita
a simetria de uma manhã de Março.

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Antiguidades de hoje (VI)

Os Lusíadas

Os Lusíadas estão como na hora!
Três séculos e nada,
Nem uma letra única apagada!
Porque a gente decora,
E nem os vermes comem
Não traçam, não consomem
Uma obra inspirada,
Suma-se o vulto, que a compôs, embora.
Os dons da Divindade
― A beleza, a verdade,
Essa glória de Deus como do homem ―
Raiam e ficam em perene aurora!

João de Deus, Campo de Flores, 1893.

«Setenta anos» (um excerto), por António Barahona

Que Deus nos dê a fé,
a certeza e o equilíbrio, Amin.
Que Deus nos dê alma pra rezar
cinco vezes por dia, Amin.
Que Deus nos dê força na vêrga, Amin.
Que Deus nos dê uma morte serena
sem mêdo do inferno, nem ânsia do paraíso,
mas apenas com vontade de fechar os olhos
e d’escutar Ya-Sin, Amin.

O Som do Sôpro, Lisboa, Poesia Incompleta, 2011, pp. 45-46.

Notas sobre Luís Quintais (III)

É talvez altura de definir Quintais como um poeta da imagem. Os seus poemas quase sempre se estruturam em torno de uma imagem central, de natureza vária mas de uma qualidade de imaginação rara e, muitas vezes, surpreendente. Exemplifico com um poema de Umbria (1999), «Cedros dos Himalaias»:

São vários os conceitos que me movem.
Um gesto abstracto desfila na imaginação:
sobre o azul, os cedros dos Himalaias.

É este o jardim de tarde que procuro.
Um lugar de intensa luz que cegue rotinas,
repetidos esquemas de pensamento.

A mesma luz até à renovada frase.
Transportem-se cedros dos Himalaias
pela imaginação adentro,

e a imensa realidade tornar-se-á
desabitável, desabituável,
repleta de conceitos que nos movam.

Todo o poema deriva dos versos 2 e 3: «Um gesto abstracto desfila na imaginação: / sobre o azul, os cedros dos Himalaias». Face a esta imagem, este «lugar de intensa luz», as rotinas e os esquemas repetidos cegam. Habitada a imaginação pelos «cedros dos Himalaias» a realidade torna-se «desabitável, desabituável». Não é preciso mais para percebermos a lógica de uma poética centrada no poder irradiante da imagem, tal como em Wallace Stevens. Mas gostava de notar o declarado carácter conceptual e abstracto da proposta imagética: «São vários os conceitos que me movem. / Um gesto abstracto desfila na imaginação». No fim do poema, consumada a deflagração da imagem na nossa percepção, o conceito regressa em forma populosa: a realidade torna-se então «repleta de conceitos que nos movam». Não parece haver aqui conflito entre o carácter necessariamente concreto da imagem e o gesto abstracto da sua motivação e composição: os cedros dos Himalaias são a beleza imotivada e plena. Um poema produzido por essa imagem, composto em função dela e para ela, é a poesia como arte sem justificação. Como «ficção suprema», enfim.

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Do etimológico, segundo António Barahona

O poeta é perverso,
isto é etimologicamente:
caminha pelo verso.

Excerto de «Numa esplanada da Rua Garrett», in O Som do Sôpro, Lisboa, Poesia Incompleta, 2011, p. 65.

Paulo Franchetti, sobre a «Poesia Incompleta»

Lembro-me perfeitamente da livraria Poesia Incompleta, de Lisboa. Lá estive uma única vez. Quando tentei voltar, o proprietário, ao que me disseram encantado com o Rio de Janeiro, prolongara as férias e deixara apenas um recado na porta, anunciando a data improvável do retorno ao trabalho.

Mas quando a visitamos, minha mulher e eu, o navio ainda não encalhara. Ia em boa toada, aparentemente.

Sentamo-nos num sofá muito baixo, que nos deixava a impressão de olhar justo por cima dos joelhos, meio à direita da cadeira do proprietário. Changuito se chamava ele ali, no desempenho brilhante da difícil arte de conciliar ar blasé e receptividade calorosa.

À sua frente, como se até ali se estendesse o palco, destacado de nós, a plateia que os mirava de rasante por sobre as rótulas, sentavam-se alguns poetas, em constante entra e sai. Não guardei os nomes, mas lembro-me de que pareciam de fato poetas: algo enigmáticos, falando quase por cifras de outros poetas. Mal, evidentemente, mas não tanto. Um deles, permaneceu todo o tempo exercitando a arte do silêncio significativo. Meditava ou apenas se esforçava por não se interessar pelos demais. Havia outro, mais torturado, mas que ficou pouco tempo.

Como não lhes conhecia a obra, era um espectador isento, interessado sobretudo naquela espécie de teatro Nô, em que as hierarquias e emoções se indiciavam por um piscar de olhos ou um mover de dedo mínimo.

Já o Changuito nada tinha de mistério e por isso aquecia a sala, com o seu cobertor sobre as pernas, funcionando como contraponto ou contracanto ao silêncio misterioso dos que, por vezes, se erguiam e percorriam distraidamente as estantes.

A alma do lugar se posicionava numa parte que um computador e um telefone mostravam ser o escritório e dali irradiava a energia que parecia a ponto de exaurir-se na não conversa dos alinhados do outro lado.

O resto, como se imagina, eram estantes, apinhadas, extravasando. Banheiro, chão, banquinhos: em tudo se derramava a profusão de folhas encadernadas, capas e formas coloridas. Em vários estágios de organização ou desorganização, nelas havia, para o bom procurador, inimagináveis coisas. Changuito as conhecia bastante bem, como seria de esperar. Mas não totalmente, de modo que restava sempre, ao curioso, alguma surpresa a compartilhar com ele.

Mais biblioteca, talvez, que livraria. Mais palco e lugar de encontro e celebração, porventura, do que biblioteca.

Leio agora a notícia de que fechará as portas. Suspeito que Changuito terminará por se estabelecer no Brasil. Tomara que aqui consiga espaço, tempo e livros para montar uma nova casa de poesia.

Enquanto não o faz, minha impressão é que alguma coisa importante e única está ausente. Só uma vez, como disse, lá estive. Mas era bom, dava uma boa sensação saber que um dia, se calhasse, poderia fazer-lhe outra visita.

Antiguidades de hoje (V)

Num álbum

O poeta é um ente sempre enfermo,
Nas algibeiras nunca tem dinheiro,
Sustenta-se do ar como o pinheiro,
E assim como o pinheiro habita o ermo.

João de Deus, Campo de Flores,  1893.

«O livreiro insolente», por Manuel António Pina

A poesia tem justificada má fama. Chamar poeta a alguém, no Parlamento ou no Estádio da Luz, é maior insulto do que chamar intelectual a Pacheco Pereira, como fez Valentim Loureiro num dia em que se achou mais pachorrento. E temos que convir que, se “ser poeta é” o que Florbela Espanca diz que é e os Trovante andam por aí a “dizê-lo, cantando, a toda a gente”, compreende-se que assim aconteça.

Imagine-se agora que, num determinado “país de poetas”, um insolente livreiro decide abrir uma livraria exclusivamente dedicada à poesia. Era bem feito que lhe chamassem poeta, ou ainda menos. Foi o que aconteceu. Ao fim de mais de três anos a juntar e vender ociosidades numa obscura rua do Príncipe Real, em Lisboa, a livraria “Poesia Incompleta” fechou ontem portas. Ainda por cima sem dívidas, o que hoje é coisa ainda mais insultuoso do que “poeta”.

Alguém deveria ter explicado ao jovem empreendedor Mário “Changuito” Guerra que a única forma de manter durante três anos uma livraria exclusivamente dedicada à poesia e chegar ao fim com uma pequena fortuna é começando com uma grande fortuna. Não foi, obviamente, o caso.

Anunciou o livreiro que irá doar (ou doer, não sei) os milhares de volumes que lhe sobram nas prateleiras ao omniministro Relvas. Só que, tal como “assustar um notário com um lírio branco”, pôr Miguel Relvas ao alcance de Kavafy, Camões e Rilke cai decerto sob a alçada da lei antiterrorista.

[Tirado daqui, com toda a vénia]

Antiguidades de hoje (IV)

Pedido

Meu amigo e senhor. Disse Vocência,
Que uma vez na semana era fatal
À sua mesa o prato nacional,
O pitéu do Brasil por excelência;

Mas preparado de maneira tal,
Por suas próprias mãos, que em consciência
Apesar da real magnificência,
Nunca o imperador provou igual!

Seguiu-se a descrição minuciosa;
Mas temendo passar por indiscreto,
Não me atrevi a dizer nada em prosa;

Em verso o caso é outro; e num soneto
Todo o arrojo é lícito! Uma coisa:
Manda-me um prato do seu feijão preto!?

João de Deus, Campo de Flores,  1893.

«Pátria», por António Gancho

Pátria lusa difusa
arguta, e escuta a hipotenusa
das raças. Asas, face, rosto e nação
a pátria é a nação quando há pão.
Pátria nacional, pátria do nosso pai,
Portugal, com força de aço
serás arguta, lusa pátria,
pátria lusa só nossa
e até onde se possa
abrangerás.
À saciedade a paz do espírito,
a paz e só a paz
a paz das almas também
que já morreram
que Deus tem
a paz entre as oliveiras
a dignidade das maneiras
a paz dos dias das horas entre as horas
os dias pelas noites fora
demora atenta e que é em seu tempo achada
a paz, país, Portugal,
pátria endeusada que é nossa, nacional,
a paz pode-se dar
é entre as oliveiras
num homem ao desmaiar até
de múltiplas maneiras
na sede que há no mar
na fé em ti depois por secular que és
nós juntos a teus pés
diremos
pátria país meu pai meu Portugal
diz que diz que é bem não fazer o mal
país meu e de meu pai
seu primeiro pedestal
por Portugal depois
por pátria primeiro pois
assim e assim e sempre assim
por fim são dois
país e Portugal, pátria
sois propriamente o sal.

António Gancho, O Ar da Manhã, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, pp. 167-8.

Notas sobre Luís Quintais (II)

É difícil resistir a citar aqui alguns versos de um poema de Angst, «Uma inocência», em que, a partir de uma imagem central de aves devorando lixo em sacos de plástico negro, Quintais resume tudo isto em modo cáustico:

O que faz a poesia?
Remir por certo tipo de palavras

certo tipo de coisas certo tipo
de asas flap flap flap certo tipo
de razões desesperadas.

A poesia faz «certo tipo de» coisas: note-se a linguagem antifundacional, que se abstém de dar nomes a «coisas» e «razões», recuando ante a vastidão de tais «coisas» e «razões» e, ao mesmo tempo, não contribuindo com mais uma acha para a fogueira desmesurada de versões mais ou menos legiferadoras da Poesia no concerto das linguagens e modos de fazer mundos.

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Antiguidades de hoje (III)

As creches

«Mãe! leva-me também?»
― Não pode ser, filhinha!
«Pois deixa-me sozinha?»
― Deixo-te a outra mãe…
Que é mãe da orfandade
E como mãe te ama!
«E ela como se chama?»
― Chama-se a Caridade!

João de Deus, Campo de Flores,  1893.

«A arte de profanar: A poesia submersa de Roberto Piva», por Renan Alves de Souza

Publicado originalmente em 1963, com o trabalho fotográfico de Wesley Duke Lee, Paranóia, de Roberto Piva (1937 – 2010), na altura de sua publicação, foi recebido com resistência, frieza e indiferença pela crítica. Apenas na antologia 26 poetas de Hoje, de Heloísa Buarque de Holanda, o poeta teve alguma repercussão, ao apresentar a poesia marginal como novidade. Piva reagiu violentamente contra o que seria o objecto da poesia concreta, a modernização brasileira, mantendo-se em “seu mundo delirante” e assumindo a sina de poeta maldito, individualista e com espírito anárquico. O escatológico, o pornográfico, o grotesco, o sublime, e o maravilhoso são temas recorrentes que permeiam a sua poesia, e que reforçam a comparação com Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, ao evocar o mal e a “destruição de tudo que é frágil”. O próprio poeta assume a impiedade em versos como “eu não sou piedoso, eu nunca poderei ser piedoso” e a todo tempo manifesta sua agressividade contra tudo e contra todos sob a luz de uma figura errante e solitária e ao mesmo tempo o mais frágil e desamparado dos seres: “no exílio onde padeço angústia os muros invadem minha memória”.

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Antiguidades de hoje (II)

Vocação

― Ah, vizinho boticário,
Pois ordenou-se também?
«Apeguei-me ao Breviário.
Pois se  eu não tinha vintém!»

(A vocação de ordinário
Depende do numerário)

João de Deus, Campo de Flores,  1893.

«Poesia Dita», em 1966, e «espectacularizada» em 1969

O documento (que poderá ver melhor clicando na imagem) consta do recente livro de Duarte Belo, O Núcleo da Claridade. Entre as palavras de Ruy Belo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2011, p. 135. Reproduzo-o aqui a título de contribuição para o estudo desse continente submerso da história da poesia na modernidade: o da sua leitura pública. Em voz alta, claro. Pois como dizia Changuito, na entrevista que há pouco deu a este blog,

há muita gente que ilumina o que lê, que me parece ser a principal função de quem o faz publicamente. Alguns casos: Richard Burton lendo Gerard Manley Hopkins e John Donne; Chico Anysio lendo Ascenso Ferreira. Autores como Mário Cesariny, Dylan Thomas, Jorge Luis Borges, Gertrude Stein, León Felipe, Allen Ginsberg, Antonio Cicero, Sylvia Plath, Herberto Helder, entre outros, lendo-se trazem claridade ao meu entendimento. Muito frequentemente ouço e volto a ouvir Galáxias, de Haroldo de Campos, o livro milagre do qual ele gravou, creio, 16 faixas/poemas. Mas, creio, a memória mais antiga de ouvir alguém que não me era próximo a dizer-se terá sido, aos dezoito ou dezanove anos, João Cabral de Melo Neto. A poesia dele pareceu-me imediatamente mais compreensível.

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Luís Miguel Queirós: «Não seria preferível recomendar um romance extraordinário de há 50 ou 150 anos, do que um livro assim-assim de um ficcionista hoje em voga?»

Luís Miguel Queirós nasceu no Porto, em 1962. Licenciou-se em Relações Internacionais, competência que praticamente não exerceu, e trabalhou depois algum tempo como escriturário numa fábrica de sapatos. Finda essa experiência, iniciou-se nas lides jornalísticas, no desaparecido O Comércio do Porto. Esteve ainda um ano noutro clássico da imprensa portuense, O Primeiro de Janeiro, do qual transitou para o Público, no final de 1989. Embora, enquanto jornalista da secção cultural, escreva necessariamente sobre áreas variadas, a sua atenção principal esteve sempre focada na literatura e, em particular, na poesia. O seu conhecimento exaustivo do corpus da poesia portuguesa, com especial competência na do último século e meio, esteve bem patente sempre que teve de resenhar para o Público as grandes antologias da poesia portuguesa publicadas desde 1989. Leitor doublé de coleccionador, a sua biblioteca de poesia portuguesa do século XX ganhou proporções discrepantes, antes de, como confessa em seguida, se ter decidido a tomar medidas profilácticas no sentido do seu emagrecimento. Tudo isto faz de Luís Miguel Queirós um candidato natural a antologiador da poesia portuguesa, prática a que aliás já se entregou, embora lamentavelmente em regime parcelar ou temático.

Na sequência das entrevistas que vimos fazendo a agentes do mundo do livro, Luís Miguel Queirós surgiu como uma escolha óbvia, no momento de passarmos ao mundo da imprensa e da crítica nela exercida. Agradecemos-lhe a disponibilidade, bem patenteada na franqueza e extensão da conversa.

TP. Como te defines? Jornalista cultural ou crítico literário?

LMQ. Se me ocorresse definir-me, julgo que não recorreria a nenhuma destas expressões. Leitor seria a aposta mais óbvia. Coleccionador de bonequinhos dos gelados Olá, Rajá e Neveiros (e de nenhuns outros) ou fazedor de listas (quaisquer listas) seriam outras possibilidades. São características compulsivas. Pelo contrário, não me exigiria o menor esforço não escrever para jornais, sobretudo se me pagassem para (não) o fazer.

 

Esperando que, nos tempos que correm, isto não forneça motivo para despedimento com justa causa, confesso que vejo o jornalismo como algo que faço – e que consumo bastante mais do que faço –, e não como algo que me constitua ou defina.

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Não se diz, Manuel António…

O dinheiro do Prémio Camões não o dava a ninguém, mas o prémio partilhava-o com toda a gente, com quem quiser. Entrego já a glória daquela merda.

Manuel António Pina em entrevista a Nuno Ramos de Almeida, no i.

«Uma inscrição», de José Ángel Valente

Foi em Roma,
onde havia naquela época
grandes concentrações de capital
e massas operárias com escassas possibilidades de subsistir.

Os poetas não registaram o problema,
porque Roma deve ter sido uma alegre cidade
nos tempos de Nero,
Aenobarbo, parricida,
poeta de ínfima qualidade.

Alguns homens simples
envenenaram as fontes
e opuseram-se ao regime oficial.

Homens acaso como este
que jaz em paz,
trabalhador de humildes mesteres
ou, talvez, mercador. Um dia
foi-lhe comunicada
certa possibilidade de sobreviver.
(Ignora-se se foi sacrificado
por semelhante crime.)
Não obstante, morreu; quer dizer, soube
a verdade. Piedosamente
repito estas palavras
sobre a pedra escritas
com igual vontade:
«Alegre permanece, Tácio,
amigo meu,
ninguém é imortal».

«Una inscripción» integra o primeiro livro do poeta espanhol José Ángel ValenteA modo de esperanza, de 1954. Publico esta tradução em homenagem aos 4 anos do blog Do trapézio, sem rede, de Luís Filipe Parrado. Tanto mais que, ao que julgo, Valente não consta dos autores traduzidos no blog neste período.

Post Scriptum: «Lição de gramática», de Berta Piñan, por Luís Filipe Parrado

Tàpies sobre João Cabral

Foi muito interessante conhecer João [João Cabral de Melo Neto, 1920-1999], porque isso se deu em um momento em que havia muita discussão em torno de poesia e arte. Questionava-se muito se os poetas e os pintores deviam fazer um trabalho social e político. As opiniões de Cabral eram muito acertadas. […] Para mim, ele era alguém um pouco mais velho que, naquela época, foi como um modelo, um exemplo muito interessante dentro dessas polêmicas.

João Cabral foi de grande ajuda para os jovens. Ele chegou a me apresentar, junto com outros artistas [Joan Ponç, 1927-1984, e Modest Cuixart, 1925-2007], em uma exposição no Instituto Francês de Barcelona [1949]. Escreveu um texto muito bonito do qual sempre me lembro. Mas foi importante sobretudo porque nos dava a oportunidade de ir à sua casa para, em plena ditadura [o franquismo, desde 1939], discutir diversos temas, inclusive a situação política da Espanha.

Tirado daqui.

A volúpia do gerente

Espero por quem não vem

Os casais entram
agarram-se aos jornais

A poesia automática não sai

Os homens conversam

O gerente chega
e atira-se, com volúpia,
à caixa registadora.

António Pedro Ribeiro, Café Paraíso, Porto, Bairro dos Livros, 2011.

Na sala de aula: Joaquim Manuel Magalhães (II)

Passo agora a transcrever o poema da sala de aula, inicialmente editado em Segredos, Sebes, Aluviões, tal como Joaquim Manuel Magalhães o recupera em Um Toldo Vermelho (Relógio d’Água, 2010, p. 154), obra na qual inclui o que considera recuperável da sua produção poética:

Num acanhado apontamento
pergunta a tabuada.

A reza de números, a regente
indaga de seguida
numa página coçada
gramática.

O arroubo, o ilógico
elemento decorado,
um pronome pessoal que laço
a um colega miudinho,
ígneo arrojo.

Não vale a pena fingir que se pode ler este poema sem a leitura contrastiva que a sua história solicita. É certo que se o leitor agora chegado à poesia de JMM ler Um Toldo Vermelho como a Obra, dispensará provavelmente tudo aquilo que, lá para trás, faz antes desta obra uma súmula. Nesta versão, a Obra não seria mais do que um privilégio do amnésico. Contudo, o problema maior da súmula da Obra a que o autor deu o nome, também ele «em versão curta» e por isso falsamente amnésica, Um Toldo Vermelho (título que recupera e ao mesmo tempo corta Uma luz com um toldo vermelho, livro de 1990), reside no envio para a memória que cada poema sobrevivente à poda produzida pelo autor põe, como que necessariamente, em marcha.

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Abadia

Na abadia franciscana de Monteveglio
há um sistema inovador
de chamar os frades para as confissões:
com um simples toque numa campainha eléctrica
pode solicitar-se frei Gregorio
com dois toques + pausa + um toque
convoca-se o frei Stefano
mas com um toque + pausa + dois toques + pausa
quem acudirá será frei Domenico.
O método parece funcionar
e bem:
com uma pausa + três toques + silêncio
+ 1 toque demorado (à volta de quinze segundos)
eu próprio pedi que Frei Giovanni della Annunziata
ali me confessasse.
Desgraçadamente Giovanni della Anunziata
responde a toques + silêncios + pausas
mas não conhece a minha linguagem
feita de palavras que se chamam umas
às outras
e que frequentemente me chamam a mim.

Américo Rodrigues, Acidente Poético Fatal, Guarda, Luzlinar, 2011.

Averno: «Nos últimos anos a poesia, e a literatura, perderam terreno. Isso não é uma catástrofe. A poesia dá-se bem em condições adversas»

Nascida em 2002, e com 59 títulos editados desde então, a Averno conquistou com esse escasso catálogo uma reputação assinalável na «linha da frente» da edição portuguesa de poesia. Elegendo algumas (poucas) referências entre os poetas portugueses de períodos anteriores, de António Manuel Couto Viana e António Barahona a João Miguel Fernandes Jorge e Joaquim Manuel Magalhães, a Averno distinguiu-se sobretudo por apostar num conjunto de poetas da nova geração: Rui Pires Cabral, Manuel de Freitas, José Miguel Silva, Vítor Nogueira e, mais recentemente, Miguel Martins, Renata Correia Botelho ou Diogo Vaz Pinto. Não descurando a edição de poetas em tradução, a editora singularizou-se, logo no seu início, pela edição da antologia Poetas sem Qualidades, responsável por um longo e polémico debate na cena poética e crítica portuguesa, e pela edição de uma revista de poesia e crítica, Telhados de Vidro, hoje no seu nº 15. Seguindo uma velha e sempre actual lição, a Averno tornou os seus livros reconhecíveis pelas opções gráficas assumidas, as quais, após algumas hesitações iniciais, estabilizaram, em grande medida por influência de Olímpio Ferreira, nas capas em kraft, na avareza no uso da cor e nos formatos «de bolso». Tudo a contra-corrente de um mercado cada vez mais rendido a cores, brilhos e relevos sem pertinência ou sentido. Não surpreende que a Averno se tenha tornado numa espécie de exemplo a seguir por todas as pequenas e dinâmicas editoras que vão preenchendo o espaço que as editoras tradicionais ocuparam, até há pouco, na edição de poesia.

Razões mais do que suficientes para irmos ouvir Inês Dias e Manuel de Freitas, o duo que assume a condução editorial da Averno. Agradecemos a ambos a disponibilidade revelada.

TP. Quantas pessoas constituem a Averno?

A. A Averno é constituída apenas por duas pessoas, no que respeita a decisões editoriais: Inês Dias e Manuel de Freitas. Porém, e desde o primeiro momento, tivemos o privilégio de contar com o apoio gráfico do Olímpio Ferreira, que soube dar um rosto sóbrio e original à editora. Após a morte do Olímpio, que por pouco não foi o fim de tudo no plano editorial, continuámos graças ao entusiasmo e à disponibilidade de pessoas como Pedro Serpa, Inês Mateus ou Diogo Vaz Pinto. De Braga, com enorme zelo, a Carla Gaspar vai-nos actualizando o blog. E há também os autores, os ilustradores, os impressores. O que, em rigor, nos permitiria dizer que a Averno é constituída por vinte ou mais pessoas essenciais para a feitura dos livros.

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Na sala de aula: Joaquim Manuel Magalhães (I)

O poema, encimado pelo número 41 (o livro, no total, tem 51 poemas), integra o volume Segredos, Sebes, Aluviões, que Joaquim Manuel Magalhães publicou na colecção Forma, da Editorial Presença, em 1985. Ou integrava, já que é um dos muitos poemas profundamente refundidos na versão, aparentemente final, da obra poética do autor editada na Relógio d’Água em 2010 com o título Um Toldo Vermelho, versão essa na qual o volume de 1985 perde o plural, intitulando-se agora Segredo, Sebe, Aluvião. Em todo o caso o poema publicado no livro de 1985 persiste, sendo a questão filológica, em rigor, improcedente para os fins que aqui se perseguem. Deixo para depois uma breve análise da versão de 2010 e passo à transcrição do poema:

Sentava-me num banco corrido,
o livro fechado nos joelhos.
A D. Lídia vinha com um xaile
e perguntava-me a tabuada.
A água das regas corria numa vala.

Depois da reza dos números,
voltava-se para um outro aluno
e ensinava-lhe gramática.
Eu ouvia e o êxtase
cerrava-se numa tosca cantilena
daqueles sons mal decorados.

Teriam sido os pronomes pessoais
ditos pelo rapazinho que esqueci
o meu primeiro poema?

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Changuito: «Há editores maravilhosos, uns assim já para o assado, e outros militantemente merdosos»

Fica no nº 11 da Rua Cecílio de Sousa, em Lisboa, e está aberta de segunda a sábado, das 10h às 19.45h. Para quem quiser ir de metro, a estação mais próxima é a do Rato (linha amarela). Se preferir o autocarro, pode apanhar o 758, que passa no Príncipe Real, embora o 773 e o 790 também possam deixá-lo lá perto. Também se pode ir a pé, ou de trotinete, e chega-se mais depressa. Chama-se Poesia Incompleta e é a única livraria (apenas de) poesia do país, sendo pouco certo que tenha congéneres para lá de Badajoz. O seu sócio principal, patrão, empregado, moço de fretes e fumador com estilo ostenta o nome de guerra Changuito e além de ser uma pessoa com boas ideias é ainda um livreiro de boas práticas. Propusemos-lhe entrevista e não se fez rogado exprimindo-se, de preferência, em verso livre.

Agradecemos a Changuito a disponibilidade manifestada. Pela nossa parte, estaremos sempre disponíveis para publicitar quem assim exerce na área da «formação cívica».

PT. Como é que lhe surgiu esta ideia, a priori um tanto louca, de uma livraria exclusivamente dedicada à poesia? Inspirou-se nalgum caso que tenha conhecido no estrangeiro?

C. A ideia surgiu da necessidade, enquanto leitor, de encontrar livros que não encontrava noutros lugares. Loucura parecia-me não o fazer. A poesia, creio que só suplantada pelo teatro, é o que dizem ser menos vendável, mas, que diabo, há sempre gente que se vai interessando. E, felizmente, não falo só de pessoas dos meios literário-académicos. Ouço e leio, muitas vezes, que só no meio há leitores. Tenho encontrado casos vários que contrariam esta ideia. Leitores que estão a começar bibliotecas, gente que constantemente está a fazer dezoito anos e que tem margem de encantamento; outros, que estarão a meio da sua vida, e se acostumaram a ler poesia, a viver com ela nos intervalos da prosa; felizmente, outros ainda, com setenta, oitenta ou noventa anos que continuam procurando aquele livro que tiveram e já não têm, ou que procuram poetas novos.

Sabia da existência de algumas, mas não conhecia fisicamente nenhuma.

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A autora com a edição nas mãos

A foto aparece no blog da Tea for One com a seguinte legenda: «Inês Dias com o pleno da edição de ‘Em caso de tempestade este jardim será encerrado’ (foto de Marta Chaves)». Inês ri mas percebemos que o volume ainda pesa e não dá muito jeito a transportar; e o autor do post e editor, Miguel Martins, ri-se manifestamente com a legenda que escreveu para a foto que Marta Chaves tirou, enquanto (de certeza) esta dizia a Inês para se rir para o passarinho.

Eis, pois, a diferença empírica entre um livro de poesia e um romance: a edição do romance não caberia num pacote transportável pelo autor. Seria caso para perguntar, entretanto, o que justifica, na era do digital, esta insistência na edição do «livro de poesia». O romance, é sabido, está a acompanhar a grande migração do livro para o e-book, seguido de perto pelo ensaio. O livro infantil será a próxima vítima, seguramente, já que a interactividade activada pela ilustração e pela relação entre esta e o texto só ganhará com a passagem a uma plataforma que permita inflacionar a dimensão lúdica do objecto. O iPad é um instrumento decisivo nesta migração, já que tudo aquilo que se dizia serem os trunfos do formato «códice» – saltos para a frente e para trás na leitura, anotações, etc. – é permitido pelo tablet, que ainda introduz novas e impressionantes valências na área do «manuseio» da obra. E contudo, na remota aldeia da poesia um punhado de gauleses resiste até ao fim…

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Antiguidades de hoje (I)

Forasteiro em Lisboa

No Rossio o Prior de Santa Iria
Vendo um palácio, disse ao Canongia:
«Que será isto aqui?»
― Dona Maria…
Onde se representam as tragédias.

Vai correndo a cidade, e sempre atento
Pergunta noutro sítio:
«Isto é convento?»
― Não! isto é o teatro de São Bento,
Onde se representam as comédias.

João de Deus, Campo de Flores, 1893.

Notas sobre Luís Quintais (I)

Não sei se esta é a melhor porta de entrada na poesia de Luís Quintais, mas em todo o caso é a que proponho. Refiro-me ao poema «Nuvens», do livro Duelo, de 2004, um dos dois livros que, no início da década anterior, colocaram Quintais na linha da frente da poesia portuguesa actual, sendo o outro Angst, de 2002. Transcrevo o poema:

Nuvens

A metafísica será talvez
uma indisposição que se quer passageira.

Porém, eu continuo a inquietar-me
com as nuvens que são arrastadas,

violentamente arrastadas, na direcção sudeste,
filtrando a luz do sol em obsessiva correria.

O poema concentra toda a arte de Quintais: o teor alusivo e elusivo; a composição irónica na passagem de um enunciado genérico e abstracto a um pormenor descritivo que não parece corroborar o enunciado mas se justapõe a ele e nos desafia ao estabelecimento dessa relação, ou melhor, ao sentido dessa relação; o estranho impacto emotivo de certas imagens; e ainda, e crescentemente nos últimos livros, embora em rigor desde o início, a sombra do poeta norte-americano Wallace Stevens. James Merrill dizia, de Stevens, que a sua poesia era uma «filosofia involuntária», uma especulação verbal sobre a realidade e sobre a natureza da relação da linguagem, e da linguagem do verso, com ela. Quintais é um poeta dessa família, embora a sua condição pós-metafísica se denuncie naquela qualificação segundo a qual «A metafísica será talvez / uma indisposição que se quer passageira». A crítica, estranhamente, tende a ler estes versos como sintoma de gravitas, descurando a ironia, mais drummondiana que pessoana, desta «indisposição passageira», que é também um envio para os neo-positivistas vienenses, e ainda para o primeiro Wittgenstein, segundo os quais a metafísica era não tanto uma indisposição mas consequência de uma «má colocação» ou, se se preferir, de uma «má posição» durante, digamos, o almoço… O importante não é tanto o «talvez» que introduz a indisposição, mas sim o «Porém» que, no início do terceiro verso, contesta o prestígio pós-metafísico da dúvida introduzida pelo «talvez»: «Porém, eu continuo a inquietar-me», que é como quem diz, nem a destruição nem a desconstrução da metafísica nos dispensam da inquietação propriamente metafísica, pela razão simples de que não podemos «continuar», ainda que no sentido da insistência de um Beckett, para quem só nos restava justamente «continuar», mesmo que sem a caução de um sentido, transcendental ou não, ou seja, não podemos viver sem a inquietação da metafísica.

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