Não tivesse hoje o virtuosismo má reputação e má imprensa e poderíamos colocar o autor de Antes do Circo no grupo dos autores demasiado sábios do seu ofício. De facto, o mais impressionante nesta recolha é a forma como ela se coloca, aparentemente, no ponto mais tardio de uma certa dialéctica moderna na qual a latência da obra de arte se vai esvaziando em favor de um triunfo do manifesto das formas – e de um triunfo de uma versão da obra, e da Arte, como forma dissimulada, ou contrabandeada, sob temas tendencialmente desprovidos de qualidades ou nulos o bastante para percebermos que se trata de dissimulação e contrabando. Para esta leitura, a epígrafe de Carlyle sob a qual o autor desejou colocar o livro – «Could anything like a story be made?» – parece ratificar os extremos a que a modernidade conduziu a aporia que descobriu, ou melhor: radicalizou, entre «contar» e «história», na medida em que aprendemos, com essa velha senhora, que só há contar e que toda a história é essencialmente, para não dizer «apenas», história do contar, sendo essa a verdadeira epopeia da literatura moderna, votada necessariamente à derrota ou à amarga vitória com que palavras fazem mundo (e eis respondida a pergunta de Carlyle).
Recensões
Murmúrios da Índia
De Almeida Faria, O Murmúrio do Mundo. Subtítulo A Índia revisitada, com desenhos de Bárbara Assis Pacheco, e prefácio de Eduardo Lourenço, é a mais recente edição da Tinta da China (fevereiro de 2012).
Perante este livro é impossível não lembrar Uma viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário), de Gonçalo M. Tavares, editado há pouco mais de um ano (Outubro de 2011), com o mesmo prefaciador. Ambas viagens literárias, a mesma meta, sobretudo o mesmo mito. Em tudo o mais, diferentes.
O Murmúrio do Mundo regista olhares e reflexões do viajante que em 2006 se deslocou a Goa e a Cochim com uma breve passagem por Mumbai. Fá-lo numa sequência de quatro capítulos, considerando apartadamente Partida, Regresso e os dois destinos.
A curiosidade de um leitor de livros de viagens contemporâneas rapidamente é defraudada por um exercício de elegante preito aos vestígios de um passado português, patrimonial, arquitetónico, histórico, no conteúdo, literário, na forma. Continuar a ler
Esferas da existência
Os Diapsalmata dos Papéis de A (1.ª Parte de Ou/Ou Um fragmento de Vida), edição de Victor Eremita, do filósofo Kierkegard, foram editados pela Assírio & Alvim em Abril de 2011. Trata-se de uma tradução direta do dinamarquês levada a cabo por Bárbara Silva, M. Jorge de Carvalho, Nuno Ferro e Sara Carvalhais, também autores das 30 páginas de notas, seguidas de um posfácio de 48 páginas, de M. Jorge de Carvalho e Nuno Ferro. Considerando que os fragmentos ocupam 33 breves páginas, adivinha-se a complexidade da tarefa.
A indicação, em subtítulo, da extensa obra de onde são amputados estes refrães – Ou/Ou, publicada em 1843 –, e do seu autor, A, e editor, Victor Eremita, introduzem o leitor na prolífica ficção autoral do filósofo. Os fragmentos que constituem os Diapsalmata são o primeiro capítulo da obra de extensão wagneriana, após o prefácio do editor. Prolongando o pacto ficcional, Victor Eremita esclarece ter encontrado os papéis em lugar escondido, cabendo-lhe apenas a subsequente tarefa de os ordenar. Neste teatro de personagens em que o autor empírico deliberadamente se oculta, os ensaios/aforismos editados representam um ponto de vista de um eu melancólico e parcialmente autobiográfico, dado que parte deles provém de escritos pessoais ou cartas de Kierkegaard. Continuar a ler
Corpo e Transcendência
De Anselmo Borges, Corpo e Transcendência, com prefácio de Adriano Moreira uma edição Almedina, de Novembro de 2011. A 1ª edição, de 2003, foi agora ampliada num verdadeiro compêndio de filosofia da religião e de antropologia filosófica onde se avulta a sólida formação teológica e filosófica e o pensamento crítico desassombrado do professor de filosofia, padre, cronista e maître à penser de católicos de risco.
Sem comprometer o essencial da ortodoxia cristã que se respira numa fé sem dogmas, mas consciente dos limites do conhecimento e da perturbação do mistério, Anselmo Borges clama a “urgência de uma filosofia do corpo, pois foi pela redução do homem a pura subjetividade pensante, esquecendo o corpo reduzido a máquina ou prisão da alma, que a própria existência do outro se tornou duvidosa e problemática” (188). Superando conceções dualistas, materialistas e mentalistas, o autor secunda o monismo dinamicista do antropólogo filosófico cristão Pedro Laín Entralgo e olha a matéria humana como enigma-mistério, por aproximação ao cosmos, logo, como algo de dinâmico que se faz (51-53). Continuar a ler
América ameaçada
Último volume da tetralogia iniciada com Todo o Mundo e Indignação e Humilhação, Némesis prolonga os romances anteriores, sublinhando os sentidos de fortuna, injustiça e consequente raiva, que agora pontificam numa história de afinidades várias com Pastoral americana.
Em 1944, em plena Guerra mundial, o judeu Bucky Cantor, diretor do recinto de jogos do seu bairro em Newark, assiste ao maior e mais devastador surto de pólio com consequências mortais entre os seus jovens. A impossibilidade de compreender as causas da epidemia provocam na comunidade uma onda de medo, histeria e de acusações que agudizam o anti-semitismo. Continuar a ler
Estilhaços da memória
A abertura do romance contém todo um programa narrativo:
Nada. A não ser, de tempos a tempos, um arrepio das árvores e cada folha uma boca, numa linguagem sem relação com as outras. Ao princípio faziam cerimónia, hesitavam, pediam desculpa. E, a seguir, palavras que se destinavam a ela e de que ela se negava a entender o sentido.
– Há quantos anos me atormentam vocês? Não tenho satisfações a dar-vos! Larguem-me! – isto em criança, em África, e depois em Lisboa. (11)
São estas as palavras que ouvimos ao longo do romance, torrenciais, sofridas, desconexas. Assim são as vozes que perseguem Cristina, internada numa Clínica psiquiátrica em Portugal.
Regressara de Angola em criança, mas as árvores que se agitam no interior de si (87, 110, passim) e “as bocas das folhas que não se calarão nunca” (99) juntam-se ao coro de vozes que nem sempre entende e identifica. Vozes que a perturbam e lhe ditam a história que escreve, e que nós lemos. São histórias que conta, no dizer da mãe, convencida de que ela era os outros ou a imitá-los somente (161).
Surpresas infantis
O álbum ilustrado Como é que uma galinha…, com texto de Isabel Minhós Martins e ilustrações da brasileira Yara Kono, é mais uma publicação do Planeta Tangerina (2011).
Mantendo a imagem de marca da editora e da coleção, insiste numa paleta cromática reduzida e de cores planas e pouco vibrantes. Na capa, a disposição sempre diferente de título, autores e editora e, no verso, a singularidade do código de barras, desta feita, enquadrado num vaso de flores.
Construída em torno da pergunta “como é que uma galinha”, a história traça o itinerário de uma descoberta partilhada entre as personagens retratadas e os pequenos leitores de idade pré-escolar. Ao mesmo tempo, tanto no corpo do texto, como nas guardas, abre-se espaço a outras histórias com galinhas.
Numa abordagem realista explora-se a surpresa admirada entre a insignificância da galinha, disforicamente tratada, e a dádiva assombrosa do ovo. Um tratamento que é compensado pela fantasia animada da fauna e articulado com um quotidiano alimentar de ordem aleatória.
Em memória de Safo
Do autor de A casa do pó, Fernando Campos, e da mesma editora Objetiva, chancela Alfaguara, saiu, no final de 2011, A rocha branca, cujo título evoca o lugar do suicídio por amor de Safo de Mitilene, famosa poetisa da Antiguidade (sécs.VII-VI a.C.).
A mesma busca do rigor possível, de fidelidade ao estilo da época, ou, aqui, ao estilo a que as traduções portuguesas do grego nos habituaram, a mesma atração pela história que se oferece à ficção “fundamentada” (14).
Romancear Safo exige articulações várias entre o conhecimento da Antiguidade e dos seus autores, os silêncios da história pessoal e o estado fragmentário da sua poesia, mas Fernando Campos é cauteloso e probo, como atesta o prefácio com que brinda os ignaros leitores não versados em matérias antigas. Em diálogos vivos e impressivos, enternece-se no desenho de Safo, poetisa, mestra educadora, mulher, mãe e amante, e retrata-a em toda a sua elegância, beleza, sensibilidade, cultura e integridade irradiadoras, percorrendo com devoção serena, num ritmo por vezes demasiado arrastado, as várias fases da sua vida.
Esperança e compromisso
Frei Fernando Ventura e Joaquim Franco assinam o diálogo Do eu solitário ao nós solidário que se anuncia uma conversa sobre “Deus, o Homem e o Mundo”, publicada pela Verso de Kapa, em Outubro de 2011.
Um leigo, jornalista, faz perguntas e um franciscano capuchinho responde. “Sem rede ou preconceitos” face a uma ortodoxia, ou a uma tradição, que em vários momentos se derroga tanto nas revisões teológicas, por exemplo, do conceito de pecado original, como no apelo à urgência da “revolução revolucionária dos não violentos” (17) para vencer os Cains que continuam a matar os Abéis. Estas duas figuras são, de resto, uma das pedras de toque do livro que associa o episódio veterotestamentário com o pecado social do querer ser deus, a sede devastadora de poder pelo poder, representada por Caim, e com a consequente descriação do mundo ilustrada pelo poema do teólogo protestante alemão Jörg Zink (73). Continuar a ler
Literatura, arte e mercado
O mapa e o território, do controverso Michel Houellebecq, foi publicado pela Editora Objectiva (Alfaguara), no final de 2011, numa tradução de Pedro Tamen.
O prémio Goncourt que lhe foi atribuído foi só mais um episódio da tumultuosa receção de um autor que surpreende fiéis e detratores com um romance que se afasta da agressividade provocadora de Partículas elementares e de Plataforma, para oferecer uma obra em que melancolia, humor, ironia e derisão se combinam no retrato do meio artístico-literário da França do século XXI.
Jed Martin, um artista plástico, notabiliza-se pelas fotografias dos mapas Michelin, derivando posteriormente para a pintura figurativa de profissionais famosos, entre os quais o próprio Houllebecq a quem pede um texto para o catálogo da exposição de retratos. Neste processo de auto-ficção intensificam-se os traços comuns entre as duas personagens e Jed Martin surge como um alter-ego do autor, partilhando com ele autismo, misantropia, solidão.
Mas a migração das figuras reais não se circunscreve à representação do escritor: artistas, críticos, jornalistas do milieu (Jean-Pierre Pernaut, Pierre Bellemare, Patrick Le Lay, Michel Drucker, Frédéric Beigbeder, Julien Lepers, Alain Gilot-Pétré, Claire Chaza) dão corpo à visão sociológica da arte no tempo presente, à sua relação com o mercado dominado por chineses e russos, Abramovich incluído, e com o “segmento de população estúpida-rica cuja freguesia” se demanda. Neste plano cumpre ainda referir o exercício da ekfrasis em que se exercita tanto o narrador quanto Houllebecq-personagem, a propósito, por exemplo do quadro da série profissões em que contracenam Bill Gates e Steve Jobs, e a discussão sobre os limites da representação de seres humanos ou de “objectos de fabricação humana” na arte e na literatura.
Um texto de Rui Bebiano sobre «O Retorno», de Dulce Maria Cardoso
Chama-se «O romance (e a realidade) do retorno» e foi publicado por Rui Bebiano, membro do painel do Páginas Tantas, no seu blog A Terceira Noite. Vale a pena ler, para perceber a que ponto a descolonização afectou a sociedade portuguesa em 1974-1975 e depois.