América ameaçada

Último volume da tetralogia iniciada com Todo o Mundo Indignação e Humilhação, Némesis prolonga os romances anteriores, sublinhando os sentidos de fortuna, injustiça e consequente raiva, que agora pontificam numa história de afinidades várias com Pastoral americana.

Em 1944, em plena Guerra mundial, o judeu Bucky Cantor, diretor do recinto de jogos do seu bairro em Newark, assiste ao maior e mais devastador surto de pólio com consequências mortais entre os seus jovens. A impossibilidade de compreender as causas da epidemia provocam na comunidade uma onda de medo, histeria e de acusações que agudizam o anti-semitismo. Continuar a ler

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Estilhaços da memória

A abertura do romance contém todo um programa narrativo:

Nada. A não ser, de tempos a tempos, um arrepio das árvores e cada folha uma boca, numa linguagem sem relação com as outras. Ao princípio faziam cerimónia, hesitavam, pediam desculpa. E, a seguir, palavras que se destinavam a ela e de que ela se negava a entender o sentido.

– Há quantos anos me atormentam vocês? Não tenho satisfações a dar-vos! Larguem-me! – isto em criança, em África, e depois em Lisboa. (11)

São estas as palavras que ouvimos ao longo do romance, torrenciais, sofridas, desconexas. Assim são as vozes que perseguem Cristina, internada numa Clínica psiquiátrica em Portugal.

Regressara de Angola em criança, mas as árvores que se agitam no interior de si (87, 110, passim) e “as bocas das folhas que não se calarão nunca” (99) juntam-se ao coro de vozes que nem sempre entende e identifica. Vozes que a perturbam e lhe ditam a história que escreve, e que nós lemos. São histórias que conta, no dizer da mãe, convencida de que ela era os outros ou a imitá-los somente (161).

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Vida e destino de um romance

Vassili Grossman

Quando, em outubro de 1960, Vassili Grossman enviou o manuscrito de Vida e Destino para o chefe de redação da revista Znamia, este passou-o de imediato para as mãos do KGB. Ainda que se vivesse então a época do «degelo» kruscheviano e da crítica pública dos crimes brutais e genocidas de Estaline, as consequências não demoraram a fazer-se sentir: o apartamento do escritor judeu ucraniano foi revistado, as cópias, os rascunhos e até as fitas de tinta das máquinas de escrever foram de imediato apreendidos. Grossman viveu a perda do seu romance, resultado de dez anos de intenso trabalho, como uma catástrofe pessoal, irreversível. Morreria três anos mais tarde na obscuridade, sem conseguir recuperar do desgosto e do desânimo. No imenso panorama da sociedade soviética que é este romance, comparado muitas vezes à obra maior de Tolstoi, o escritor retrata de forma realista, mas inegavelmente distante do cânone estético e político oficial, a vida durante a Segunda Guerra Mundial, com particular ênfase na ofensiva alemã, e na defesa e contraofensiva soviéticas, que culminaram com a libertação de Estalinegrado e dos territórios ocupados pelos nazis. Episódios que o autor, aliás, diretamente viveu como correspondente de guerra ao serviço do Exército Vermelho, para o qual se havia voluntariado como soldado raso.

Estabelece-se ali, e terá sido com toda a certeza essa a razão principal da desgraça do romance e do seu criador, uma incómoda analogia entre os processos de controlo político usados pelos sistemas totalitários nazi e soviético, sobressaindo o antissemitismo estrutural que, com diferentes cambiantes, de facto partilhavam. No centro da trama, a vida atribulada de uma família de «classe média», seja lá o que isso pudesse ter significado na era estalinista, dramaticamente dispersa entre a Alemanha e a Sibéria pelas circunstâncias da guerra e das suas sequelas. Após o poeta Lipkine, o físico Sakharov e o escritor Voïnovitch terem conseguido fazer sair da União Soviética um microfilme feito a partir de dois manuscritos entretanto recuperados, o texto será impresso em russo em 1980, numa pequena tiragem da responsabilidade de um editor suíço, antes de começar a ser traduzido em numerosas línguas. Em 1988, no auge da perestroika, foi finalmente editado em Moscovo. No entanto, na Rússia, e ao contrário do que tem acontecido mais a ocidente, o reconhecimento público da dimensão desta obra imensa e de leitura imersiva, bem como o do percurso pessoal e intelectual do próprio Grossman, gradualmente distanciado do regime soviético, têm sido claramente exíguos. Como, citado pela revista francesa Books, escreveu o encenador Lev Dodine no semanário Itogui, tal não pode deixar de acontecer numa sociedade que «emprega o essencial da sua energia a renegar o próprio passado».

Vassili Grossman, Vida e Destino. Trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra. Dom Quixote. 856 págs. Publicado também em A Terceira Noite.

Em memória de Safo

Do autor de A casa do pó, Fernando Campos, e da mesma editora Objetiva, chancela Alfaguara, saiu, no final de 2011, A rocha branca, cujo título evoca o lugar do suicídio por amor de Safo de Mitilene, famosa poetisa  da Antiguidade (sécs.VII-VI a.C.).

A mesma busca do rigor possível, de fidelidade ao estilo da época, ou, aqui, ao estilo a que as traduções portuguesas do grego nos habituaram, a mesma atração pela história que se oferece à ficção “fundamentada” (14).

Romancear Safo exige articulações várias entre o conhecimento da Antiguidade e dos seus autores,  os silêncios da história pessoal e o estado fragmentário da sua poesia, mas Fernando Campos é cauteloso e probo, como atesta o prefácio com que brinda os ignaros leitores não versados em matérias antigas. Em diálogos vivos e impressivos, enternece-se no desenho de Safo, poetisa, mestra educadora, mulher, mãe e amante, e retrata-a em toda a sua elegância, beleza, sensibilidade, cultura e integridade irradiadoras, percorrendo com devoção serena, num ritmo por vezes demasiado arrastado, as várias fases da sua vida.

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Literatura, arte e mercado

O mapa e o território, do controverso Michel Houellebecq, foi publicado pela Editora Objectiva (Alfaguara), no final de 2011, numa tradução de Pedro Tamen.

O prémio Goncourt que lhe foi atribuído foi só mais um episódio da tumultuosa receção de um autor que surpreende fiéis e detratores com um romance que se afasta da agressividade provocadora de Partículas elementares e de Plataforma, para oferecer uma obra em que melancolia, humor, ironia e derisão se combinam no retrato do meio artístico-literário da França do século XXI.

Jed Martin, um artista plástico, notabiliza-se pelas fotografias dos mapas Michelin, derivando posteriormente para a pintura figurativa de profissionais famosos, entre os quais o próprio Houllebecq a quem pede um texto para o catálogo da exposição de retratos. Neste processo de auto-ficção intensificam-se os traços comuns entre as duas personagens e Jed Martin surge como um alter-ego do autor, partilhando com ele autismo, misantropia, solidão.

Mas a migração das figuras reais não se circunscreve à representação do escritor: artistas, críticos, jornalistas do milieu (Jean-Pierre Pernaut, Pierre Bellemare, Patrick Le Lay, Michel Drucker, Frédéric Beigbeder, Julien Lepers, Alain Gilot-Pétré, Claire Chaza) dão corpo à visão sociológica da arte no tempo presente, à sua relação com o mercado dominado por chineses e russos, Abramovich incluído,  e com o “segmento de população estúpida-rica cuja freguesia” se demanda. Neste plano cumpre ainda referir o exercício da ekfrasis em que se exercita tanto o narrador quanto Houllebecq-personagem, a propósito, por exemplo do quadro da série profissões em que contracenam Bill Gates e Steve Jobs, e a discussão sobre os limites da  representação de seres humanos ou de “objectos de fabricação humana” na arte e na literatura.

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