«Poesia Dita», em 1966, e «espectacularizada» em 1969

O documento (que poderá ver melhor clicando na imagem) consta do recente livro de Duarte Belo, O Núcleo da Claridade. Entre as palavras de Ruy Belo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2011, p. 135. Reproduzo-o aqui a título de contribuição para o estudo desse continente submerso da história da poesia na modernidade: o da sua leitura pública. Em voz alta, claro. Pois como dizia Changuito, na entrevista que há pouco deu a este blog,

há muita gente que ilumina o que lê, que me parece ser a principal função de quem o faz publicamente. Alguns casos: Richard Burton lendo Gerard Manley Hopkins e John Donne; Chico Anysio lendo Ascenso Ferreira. Autores como Mário Cesariny, Dylan Thomas, Jorge Luis Borges, Gertrude Stein, León Felipe, Allen Ginsberg, Antonio Cicero, Sylvia Plath, Herberto Helder, entre outros, lendo-se trazem claridade ao meu entendimento. Muito frequentemente ouço e volto a ouvir Galáxias, de Haroldo de Campos, o livro milagre do qual ele gravou, creio, 16 faixas/poemas. Mas, creio, a memória mais antiga de ouvir alguém que não me era próximo a dizer-se terá sido, aos dezoito ou dezanove anos, João Cabral de Melo Neto. A poesia dele pareceu-me imediatamente mais compreensível.

De resto, os focos de interesse do documento são vários e qualquer pessoa que conheça minimamente a história da poesia portuguesa nos anos 60 e depois os encontrará facilmente. Permito-me chamar a atenção para um deles: a notória divergência dos modos de encenar a questão da «poesia dita» entre o que este documento patenteia e aquilo que, ao longo dos anos 60, do lado da «poesia experimental» (e podemos pensar num nome como Ana Hatherly e em sessões multidisciplinares que incluíam Jorge Peixinho ou Constança Capdeville, além de pintores, etc.), foi sucedendo, entre a poesia dita e a mostrada. Para exemplificar todas essas divergências sugiro o caso maior de «Nós não estamos algures», obra multimédia de Ernesto de Sousa a partir de Almada (o título provém de A Invenção do Dia Claro), realizada em Algés em 1969. Reproduzo em seguida alguns dos cartazes usados no espectáculo, cujo subtítulo convirá destacar: «Exercício sobre a poesia comunicação».

Para se perceber as diferenças, alguns depoimentos. Para começar, de Ernesto de Sousa, ao Diário de Lisboa, 16 de Abril de 1970 (recorro ao volume Ernesto de Sousa / Revolution my Body, FCG, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Lisboa, 1998, p169):

Aí experimentámos alguns meios, processos e formas decisivas para o nosso trabalho; projecções simultâneas, associação de acontecimentos teatrais a acontecimentos musicais, envolvimentos (com um poema de Almada), liberdade relativa de participação do espectador e toda a sua difícil problemática, autofinanciamento (com a venda de um cartaz do Calhau, baseado numa frase da Invenção, e sorteio de exemplares fotocopiados desta obra esgotada), convívio (as sessões terminavam em ceia) e debate não dirigido.  Houve efectivamente muita discussão e além de aberta esta ‘obra’ foi mesmo obra polémica…

Por seu turno, Fernando Calhau dirá, em entrevista gravada por Maria Helena de Freitas e Miguel Wandschneider, em Maio de 1997 (p. 170 do referido volume):

Nós não tínhamos acesso aos happenings, por exemplo aos do Kaprow, do Oldenburg, do próprio Jim Dine, que também tinha feito umas coisas. O que nós apanhávamos aqui eram fotografias. E uma fotografia de um happening não dá nunca para ver como é que é, não se percebe o que é que é. Mas esses happenings normalmente tinham uma história, havia uma espécie de narração, eram uma espécie de teatrinho, digamos. E dentro dessa medida, o Nós Não Estamos Algures era, de facto, um happening.

Basta ler algumas das proclamações dos cartazes que acima reproduzo para se perceber a diferença entre o modelo do happening de 1969 e o de «Poesia Dita». Em «Nós não estamos algures» o texto é objecto de «utilização» – «Nós não estamos algures // Exercício sobre a poesia comunicação // Com a utilização de textos poéticos» – e de trituração/mastigação. As «linhas», imprescindíveis no modelo da leitura de «Poesia Dita», são substituídas pelo privilégio das «entrelinhas». Se o modelo subjacente à performance de 1966 é estabilizado o suficiente para nele reconhecermos uma «récita», o do evento de 1969 é suficientemente estranho a definições estáveis para suscitar um trabalho de definição negativa (no cartaz com o número 3): «Isto não é teatro // Isto não é um espectáculo // Isto não é cinema // Isto não é um colóquio». A conclusão – «É uma sessão de trabalho // talvez venha a ser uma festa» – reforça o carácter insuficiente de qualquer das definições disponíveis à época. Por outro lado, proclamações como «A poesia não está nos livros // A poesia que está nos livros // Ainda não é poesia // a poesia não se lê       faz-se» (dispenso-me da reprodução acurada do jogo de maiúsculas e minúsculas), apontam para uma exterioridade ao texto que, no mesmo cartaz, se traduz numa proclamação em que os ecos de Maio 68 são reconhecíveis: «o objectivo do nosso trabalho é: // Aprender a não trabalhar // Aprender a (só) fazer amor». O cartaz 7 reforça toda esta linha apelando a um trabalho em torno da ideia-forte de «espectáculo» (ideia cara, como sabemos, aos situacionistas). Transcrevo a conclusão: «Dia a dia escondes os teus desejos // profundos // convidamos-te a viver totalmente // a fazer da tua vida um espectáculo total».

Desse «espectáculo total» faz obviamente parte o público, razão pela qual reproduzo em seguida as duas páginas que, no livro antes referido, reúnem as provas de contacto da preparação da sessão e da sua realização:

Não por acaso, não conheço nenhuma foto, ou fotos, relativas a sessões de «Poesia Dita» nos anos 60, nas quais o público desempenhe uma função – artística, estética e política – próxima da que estas ostensivamente dão a ver (aliás, são bem escassas as fotos de elementos do público nessas sessões, escassamente fotografadas em geral). Como no comentário de Calhau, as fotos não são o happening; mas desempenham, na sua reconstrução histórica e, antes disso, na sua certificação empírica ou mesmo na sua fenomenologia performativa, um papel central – o papel que na tradição da «Poesia Dita» é representado pelo documento com a reprodução da lista dos textos a dizer. Ou seja, duas diversas políticas performativas que se concretizam em duas diversas políticas de registo de evidências. Aliás, a própria dimensão multimédia da segunda suscita a produção de materiais (os cartazes) que a concentração na voz dispensa, no primeiro caso (seria interessante, e sobretudo importante, saber se dispomos de alguns registos gravados dessas sessões).

É evidente que nestas duas linhas de exploração performativa do texto poético se joga boa parte do devir novecentista do Moderno entre nós. De um lado, a Voz como veículo de amplificação, mas também restituição, do texto, num entendimento a priori formalista deste. Ou seja, a leitura pública servindo uma política de afirmação de limites, fronteiras e especificidades do medium, que é, algo contraditoriamente, «o poema na página». Podemos retraçar a ascendência desta linha até à figura pioneira de Manuela Porto e, em seguida, a «diseurs» mediáticos como Villaret (e, já depois de 1966, Mário Viegas) ou à gravação em disco de poetas dizendo a sua própria poesia, sobretudo pela Valentim de Carvalho, sob a orientação de David Mourão-Ferreira. Do lado da pulsão inter ou multimédia, creio que devemos retraçar essa genealogia até à sessão no Teatro República em 1917, quando Almada leu o seu Ultimatum futurista e, por delegação, o de Álvaro de Campos. Faz todo o sentido que Almada esteja entre o público de «Nós não estamos algures», assim como faz ainda mais sentido que esse evento seja «dirigido» por Ernesto de Sousa, figura de mediador e «curador» da obra de Almada no momento em que as neo-vanguardas se manifestam entre nós, nos anos 60.

Mais estimulante, porém, do que esta contraposição prévia, e algo metodológica também, são os cruzamentos e articulações recenseáveis. Por exemplo, no documento da «Poesia Dita», a co-presença e convivência de Joaquim Manuel Magalhães e Gastão Cruz sob um mesmo modelo, que ambos explorariam em seguida, e o primeiro até em programas de TV, mas com mais pontos em comum do que se poderia imaginar hoje. Trata-se de um modelo que, no caso de ambos, é difícil não colocar sob a égide de uma comum intenção pedagógica, embora em Magalhães evoluindo, no seu trabalho crítico, e público, para uma peculiar pedagogia «anti-didáctica», não reconhecível em Gastão Cruz. No modelo de «Nós não estamos algures», a pedagogia é outra e não estritamente poética: trata-se agora de «utilizar» textos para provocar «a sua re existência a sua resistência». O modelo textualista da «Poesia Dita» revela-se insuficiente para os propósitos «espectaculares» (porque críticos do espectáculo banal do dia-a-dia) do evento dirigido por Ernesto de Sousa. O cartaz estaria aqui pelo slogan de Maio 68, ou seja, e em rigor, estaria pela rua e pela revolução que a poesia «ritmaria». Curiosamente, porém, e se descontarmos Almada, que é nitidamente o terceiro excluído da nossa tríade modernista no documento de «Poesia Dita» (Pessoa e Sá-Carneiro não deixam de constar, mas antes temos Pessanha e depois saltamos para Carlos de Oliveira), os autores reivindicados por «Nós não estamos algures» – Mário Cesariny, Herberto Helder, Luiza Neto Jorge – podiam estar perfeitamente no documento de 1966 (e Cesariny está, sem protestos conhecidos, estando porém contra a sua vontade, de que deu pública notícia, em «Nós não estamos algures», estando no documento de 1966 Ruy Belo «na vez de» Herberto e não estando Luiza por pudor geracional). Mais uma vez, articulações onde esperaríamos clivagens. Em todo o caso, convém não diminuir aquilo que no modelo performativo de «Poesia Dita» é tentativa, sempre algo contraditória, de «sair para fora da página» do livro e de recuperação de uma oralidade do poético, perdida e reprimida pela civilização do impresso. Nesse sentido, e apesar de todas as discrepâncias, uma consonância profunda percorre as duas experiências: a da não abdicação da Voz, do espectáculo e do espaço público em favor da experiência da leitura solitária e silenciosa como modelo único de relação com o poema na modernidade. E, como inferência teórica, a possibilidade de um modelo de relação com o texto poético menos hermenêutico do que sensorial ou estésico, menos logocêntrico do que afectivo-simbólico.

Duas notas para terminar. A primeira, para chamar a atenção para o facto de que esta estruturação algo dicotómica do campo poético em torno da leitura e recepção do poema se mantém hoje, embora em termos diversos. O regresso, a que vimos assistindo, do fenómeno da «récita poética», com extensão mediática variada e intensa – Encontros de Poetas, registos no YouTube, podcasts, recuperação de catálogo de edições em disco, etc. – convive hoje com fenómenos como a Slam Poetry mas, antes dela e em posição mais relevante entre nós, com experiências como as dos Wordsong ou, mais historicamente, o disco Os Poetas, com que a Assírio assinalou um seu aniversário, recorrendo à música de Rodrigo Leão para «acompanhar» poemas, e ainda uma gama de práticas intermédia (Adolfo Luxúria Canibal e o seu projecto Estilhaços, por exemplo), que nem por tenderem ao pontual deixam de ser significativas e enriquecedoras. Ou seja, embora os suportes mediáticos tenham mudado mais ou menos drasticamente, a clivagem entre uma performance estritamente oral e um outro modelo mais híbrido e multimédia, permanece operativa e fecunda, realizada embora em termos historicamente incoincidentes com os dos anos 60. A segunda, para regressar ao continuum histórico, recordando uma obra maior, o filme Conversa Acabada, de João Botelho, que em 1980 se inscreve de forma fulgurante na fenomenologia que tentei descrever. Recordo que Almada não deixa sombra nesse filme dedicado em exclusividade à relação entre Pessoa e Sá-Carneiro, mas dedicado também a uma prática de oralização do texto literário, com privilégio para o poético, que explora de forma notável numa gama de vozes, leituras e tecnologias de mediação sonora. O que é curioso é que se por um lado o filme parece alinhar-se com a falange da «Poesia Dita», por outro, na forma como explora a retórica da encenação – também vocal, por exemplo, nas aparições de Jorge Silva Melo como MC (Mestre de Cerimónias) – e de um grafismo que transforma o mundo em cenário de papelão, o filme de Botelho herda uma situação multimédia, local e internacional, cujo impacto e cujas implicações nele estão ainda por estudar. Mais uma vez, a concentração de esforços no trabalho da Voz e da leitura «recitada» do texto parece arrastar o autor para um extra-texto que tem tanto de ilustrativo (ou não se tratasse de cinema) quanto de crítico do devir espectacular do texto e do cinema. Como se não houvesse forma de fazer com que a Voz se limitasse ao texto; e como se não houvesse forma fiel de adaptar a literatura ao cinema sem dar a ver a extensão (produtiva) do conflito não tanto entre imagem e texto, mas antes entre corpo e voz. É justamente aí que Botelho instala a «conversa acabada» do cinema, um tropo maior da restituição sempre póstuma que o sonoro traz ao corpo opaco, mas verdadeiro, do mudo, enquanto desnaturalização das evidências da Voz. Um outro nome para esse tropo ou processo poderia ser, como aprendemos em todas as ocorrências antes exploradas, «poesia moderna»: silenciosa, dita ou performada em regime multimédia.

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