A cegueira da escrita. Sobre a cena da escrita em Carlos de Oliveira

Nenhum heroísmo, nenhuma retórica, um mínimo de corpo: eis uma descrição possível da cena da escrita em Carlos de Oliveira. A cena, esclareça-se, é nocturna, oficinal e despojada de qualquer tipo de transcendência, nem que apenas a fornecida por essa forma moderna, ou burguesa, de transcendência a que damos o nome de Literatura. O autor escreve à «luz eléctrica», que aqui não é um dos nomes (ou o nome) do ansioso Eros moderno, fabril e febril, de Álvaro de Campos, mas tão-só o foco e o casulo de uma prática simultaneamente criativa e mecânica, corporal e espectral, intensa e mortificante. Leia-se, de uma das escassas descrições dessa cena:

O trabalho oficinal é o fulcro sobre que tudo gira. Mesa, papel, caneta, luz eléctrica. E horas sobre horas de paciência, consciência profissional. Para mim esse trabalho consiste quase sempre em alcançar um texto muito despojado e deduzido de si mesmo, o que me obriga por vezes a transformá-lo numa meditação sobre o seu próprio desenvolvimento e destino. (Carlos de Oliveira, O Aprendiz de Feiticeiro, Lisboa, Sá da Costa, 19793, pp. 205-206.)

Notemos o perfil moderno deste autor «sem biografia», como quase todos os grandes modernos, a começar pelo escriturário Pessoa: «trabalho oficinal», «consciência profissional», «horas de paciência», despojamento e, finalmente, auto-consciência da obra de arte. Esta descrição surge potenciada em verso no extraordinário «Soneto Fiel», de Sobre o lado esquerdo (1968), de que transcrevo os últimos sete versos: «A solidão coalhada sobre a mesa. // As sílabas de cedro, de papel, / A espuma vegetal, o selo de água, / Caindo-me nas mãos desde o início. // O abat-jour, o seu luar fiel, / Insinuando sem amor nem mágoa / A noite que cercou o meu ofício». Resumindo abruptamente, dir-se-ia que estes versos, como as breves e escassas descrições da cena da escrita em Carlos de Oliveira, nos sugerem o escritor como um «escriturário da literatura», essa versão tardo-oitocentista rastreável já no Flaubert de Bouvard et Pécuchet, segundo a qual a dicotomia feliz entre o burocrata e o criador está condenada a fracassar sob a luz crua (a luz eléctrica…) das realidades do «ofício». Por outras palavras, o poeta é um oficiante — notem-se as conotações sacras, e genesíacas, do verso «Caindo-me nas mãos desde o início» — ungido pela epifania… da burocracia, cujo outro nome, ou pseudónimo, seria «literatura». Esta consistiria provavelmente numa vasta corporação de funcionários solitários, assinalados, na escuridão da «fábrica», pelo seu abat-jour fiel. O nome desta fábrica, como já foi sugerido, pode ser literatura ou, mais radicalmente, linguagem.

Em todo o caso, nem uma nem outra se mostram disponíveis para fornecer o aconchego humanista tradicionalmente associado à criação — musas, vozes de pais distantes, elos, cadeias —, oferecendo antes a desolação de uma paisagem «sem amor nem mágoa». O mundo da linguagem, da literatura, da criação, não se condói dos seus oficiantes: a «arte» (chamemos-lhe assim) não é um vir caritativo do mundo até ao sujeito que o convoca, mas antes a percepção de que os seus produtos (da arte) são formas (auto)deceptivas, e não raro desesperadas, de contrabando de caridade a um mundo sem amor nem mágoa; ou, se se quiser, sem necessidade de nós. Podemos chamar a isto o anti-humanismo de Carlos de Oliveira, o qual pressupõe sempre, como se vê na encenação nocturna da «solidão coalhada sobre a mesa», uma perspectiva cosmológica que reduz o homem, ainda quando criador, ao infinitamente pequeno (mas, por aí, a uma refiguração sublime), e uma perspectiva do cosmos como inumano — e como o inumano. Nesse sentido, o escritor é escriturário ou burocrata não tanto porque como eles seja uma criatura massacrada pelo ofício (isso seria ainda o cansado legado humanista), mas sim porque é tão habitado e parasitado como eles pela inumanidade de uma prática de registo do mundo que não consegue ir além de uma sua declinação por itens, ou alíneas: ou seja, uma ordem sem qualquer garantia de sentido. A única transcendência, digamos, é a da ordem mesma ou da axiomática, vale dizer, das linguagens. Confiando-se a elas, o escritor, como o escriturário, confia — nelas, justamente. Sem contudo confiar que elas sejam mais do que isso: formas de registo mais ou menos confiado do mundo.

E contudo, tal registo não desce, como uma evidência auto-imposta, sobre o escritor-escriturário; ele deve ser conquistado, por entre o emaranhado cego do mundo e da escrita que o regista também cegamente. Um exemplo:

Também semeio florestas, mais enredadas que as do padre Bernardes, autor elegante e claro, dizem (eu não gosto). Escrevo e cada página é a maranha anoitecida. Emendas, riscos, setas para as margens do papel; os acrescentos metem-se uns pelos outros como as frondes enoveladas. Mal se vê dentro destas frases. Só com a lâmpada da paciência. Felizmente não falta paciência a Gelnaa, que se tornou o meu criptógrafo. Decifra a escrita semi-secreta e copia-a à máquina. Torno a corrigir, a emaranhar. Nova cópia, novas correcções. Etc. Não sou nenhum Flaubert (paradigma habitual do escritor que tritura as palavras até à náusea) mas custa-me deixar o trabalho a meio. Faço o que posso por ele. Quase nada. (Op. cit., pp. 138-139)

Passos como este, pela sua extrema congruência com o processo revisionista que a partir de certa altura realimenta a obra de Carlos de Oliveira, ou ainda com títulos como Trabalho Poético, deram e dão azo a um discurso de exaltação de uma concepção materialista do literário. O ponto cego de tal discurso, contudo, é a forma como esse materialismo é curto-circuitado por um não-produtivismo que faz deste trabalho uma obstinada metáfora da escassez: o autor escreve pouco e mal, necessitando de ajudas externas (mas seria caso para perguntar se «Gelnaa» é uma entidade externa à obra que aliás ajuda a nascer, ou se é ainda uma criatura da obra) para que a escrita seja decifrável. «Maranha» e «fronde» são aqui signos maiores de uma arte caligráfica esotérica, necessitada da criptografia da tão cara secretária (ou raro oráculo?) para quem se criou o nome Gelnaa, também ele uma maranha produzida a partir de um outro nome. Isto é: uma reescrita.

O processo de obscurecimento — «Mal se vê dentro destas frases» — é sem fim e parece possuído de uma estranha finalidade replicante: «Torno a corrigir, a emaranhar. Nova cópia, novas correcções. Etc.». Raro e radical materialismo, este, que espacializa o texto escrito a ponto de o tornar caligrafia contemplável: «Escrevo e cada página é a maranha anoitecida. Emendas, riscos, setas para as margens do papel; os acrescentos metem-se uns pelos outros como as frondes enoveladas. Mal se vê dentro destas frases.» Mal se ver é a forma necessária de um apelo denegado ao ver, em sub-rogação do ler. Ou melhor, é a forma visível de um devir matérico da escrita que lhe atribui a densidade, a profundidade, enfim, a tridimensionalidade de uma maranha na qual se mergulha como quem desce e sobe pelo feijoeiro mágico da caligrafia. Magia perigosa, contudo, e sempre no limiar do indecifrável que perversamente abraça ao estabelecer uma reversibilidade (quase) perfeita entre corrigir e emaranhar — «Torno a corrigir, a emaranhar.» —, reversibilidade permanentemente alimentada pelo devir replicante de uma escrita cujo melhor signo é o «Etc.» que nos promete mais do mesmo: mais da pobreza escura da mesma matéria escritural.

Ou seja: este é um materialismo bloqueado pela rugosidade indomesticável da matéria, rugosidade essa que a escrita emaranhada do texto traduz num hermetismo só penetrável pela longa «lâmpada da paciência». O «abat-jour fiel» não parece pois prometer luz ou iluminações, ainda que apenas profanas; mas tão-só a paciência infindável de um movimento regressivo de reescrita de um texto e de uma cena primitivos, que contudo só existem enquanto tais porque, e na medida em que, a reescrita os possa decifrar ou criptografar, num devir desprovido de garantias e ademais a todo o instante sabotado pela sobreposição de correcção e emaranhamento. Como se sem aplicada decifração (sem leitura) não pudesse haver verdadeira escrita: a que daria enfim a ver aquilo que só pela força da reescrita se torna longinquamente visível e a que talvez pudéssemos chamar «a cegueira da escrita», tropo não-parafraseável da «cegueira da matéria». Por outras palavras, talvez mais apropriadas, tudo se passa como se o autor nos dissesse: «No meu princípio está o meu fim, no meu fim está o meu princípio». Etc., etc., etc.

Eis o que pode ser uma (re)escrita materialista da génese: uma história sem fim, porque em rigor sem um começo iluminável.

[Texto publicado em 2004, em volume dedicado a escritores da zona centro, no âmbito das actividades da Coimbra Capital da Cultura]